domingo, 31 de março de 2013

Sobre a Páscoa...

 
 
"O Luiz Fernando Veríssimo escreveu uma crônica hilariante
sobre a Páscoa. Foi um diálogo absurdo entre um menino, seu
pai e sua mãe, sobre o sentido dessa festa. A crônica termina
com uma observação justíssima do menino. Disse ele: "Eu acho
que ao invés de "coelho da Páscoa" deveria ser "galinha da
Páscoa..." Pois é claro. Todo mundo sabe que coelhos não
botam ovos. E todos sabem que galinhas botam ovos...
Confesso minha ignorância: não sei como é que o coelho entrou
nessa estória. Para início de conversa é preciso lembrar que
os textos sagrados não fazem referência alguma a esse
animalzinho fofo. Quem foi que teve a idéia de torná-lo o
personagem mais importante dessa celebração cristã?


Certamente um gozador. E para tornar a estória mais absurda,
fizeram com que os coelhos, que não botam ovos, botassem ovos
de chocolate... Nos tempos de Jesus Cristo havia chocolate?
Acho que não. Galinhas não são seres poéticos. Na poesia elas
sempre aparecem como bichos engraçados, cacarejantes, de
inteligência curta, cuja única função é botar ovos e serem
transformadas em canja. Assim é compreensível que vocês não
gostem da idéia de galinhas de Páscoa. Eu também não gosto.
Mas poderia ser "pombas de Páscoa". Pombas são seres
teológicos. Começando com a Arca de Noé. A se acreditar no
relato do Antigo Testamento Noé, para se certificar de que o
dilúvio acabara, soltou um corvo. Confesso que se eu fosse
Noé teria adotado um método mais simples. Teria aberto a
janela da arca e esticado o pescoço para fora. Eu veria,
então, que a chuva havia terminado e que as plantas já
estavam soltando os seus brotos. Será que Noé acreditava que
o corvo, depois de voar, voltaria para dar um relatório? Como
é que o corvo comunicaria os seus achados? O corvo ingrato
não voltou. Desde então eles ficaram aves de má fama,
injustamente. Vendo que o corvo não voltava e sem se dar
conta do método mais fácil que sugeri, ele soltou uma pomba.
Ah! Ave maravilhosa! Voou, viu, apanhou um ramo verde de
oliveira, e o trouxe para Noé! É preciso notar que as
oliveiras daqueles tempos extraordinários deveriam ser
diferentes das oliveiras de agora. As oliveiras de agora
certamente estariam mortas, depois de passar tanto tempo
debaixo d'água. Oliveiras não são plantas sub-aquáticas. Foi
então que, pelo galho de oliveira que a pomba lhe trouxera,
Noé ficou sabendo que o dilúvio havia chegado ao fim. Desde
então as pombas passaram a ser símbolos teológicos: símbolos
de pureza, símbolos de paz. Uma das telas mais comoventes de
Picasso é uma menina com uma pombinha nas mãos. De fato as
pombas têm um jeitinho de mansidão. O que não acontece com os
corvos negros de bico torto. Bom para os corvos, mau para as
pombas. As pombas passaram a serem usadas como aves a serem
sacrificadas no templo pelas razões mais incríveis. Se não me
falha a memória as mulheres, terminado seu período menstrual
de impureza, deveriam sacrificar pombas no templo para se
purificarem. Pobres pombas! O templo era uma sangüeira. Quem
quiser saber mais sobre a sangüeira do templo que leia o
livro de Saramago, "O evangelho segundo Jesus Cristo". Os
corvos, pela esperteza do primeiro corvo que não voltou,
ficaram livres desse triste destino. Vem então o Novo
Testamento que sacraliza definitivamente as pombas, ao
relatar que o Espírito Santo é uma pomba. Sobre isso leia-se
o poema de Alberto Caeiro em que ele conta como Jesus voltou
à terra, tornado outra vez menino. É lindo.
Brincadeira de lado, o embaraço dos pais e a pergunta do
menino revelam a confusão que marca essa festa. Ninguém sabe
direito o que é que está sendo celebrado. E, para dizer a
verdade, acho que são bem poucos aqueles que fazem alguma
celebração. Antigamente semana santa era coisa séria. Lembro-
me da procissão do enterro, os panos roxos, a banda de música
tocando a marcha fúnebre de Chopin, as matracas, as mulheres
mais piedosas carregando pedras na cabeça, como penitência...
Isso mesmo: as mulheres carregavam pedras na cabeça. Como é
bem sabido, Deus gosta de ver os seus filhos e filhas sofrer.
Isso para não dizer da quaresma que a antecede, tempo em que
as hostes do mal, demônios de todos os tipos, assombrações,
mulas sem cabeça, almas penadas, ficavam soltas e todo mundo
tinha medo de sair à noite. Sempre havia alguém que relatava,
pela salvação da mãe morta, que havia visto uma mula sem
cabeça numa encruzilhada à meia-noite. Meia noite era a hora
do medo. E no escuro ouvia-se o zunido sinistro dos berra-
bois. Semana Santa era um tempo metafísico, entre o céu e o
inferno.
Agora é diferente. Páscoa é domingo, pé de cachimbo, cachimbo
é de barro, bate no jarro, jarro é de ouro, bate no touro,
touro é valente, chifra a gente, a gente é fraco, cai no
buraco, buraco é fundo, acabou-se o mundo... Páscoa é fim de
semana santa, feriado de três dias, a praia está esperando,
hora de se preparar para a viagem...
Contou-me um sacerdote da Igreja Ortodoxa Russa que lá a
Páscoa é uma grande festa. O comunismo não foi capaz de
destruir a alma do povo. Pela manhã as pessoas saem pelas
ruas e se cumprimentam dizendo: "Cristo ressuscitou!" E o
outro responde, com uma risada: "Sim, ele ressuscitou!" ( A
obra sinfônica de Rimski-Korsakov "A grande Páscoa russa" é
linda". E agora percebo que faz muito tempo que não a
ouço. ) . Entre nós, país onde 99% das pessoas acreditam em
Deus ( acreditam porque acham que, se não acreditarem, é
capaz de ele, Deus, enviar algum castigo... ), a Páscoa é
como uma casca de cigarra presa no tronco de uma árvore.
Vazia. Morta. Não tem nada lá dentro. Mas já foi o corpo de
um ser vivo que, cansado de ficar preso na casca, criou asas
e voou. A Páscoa, com seus ovos de chocolate, é celebração
inconsciente de um tempo que não existe mais, tempo em que se
acreditava. Os ovos de chocolate, vocês sabem, são tão ocos
quanto as cascas de cigarra...
Na tradição cristã mais antiga a semana santa era um teatro,
o drama da vida dentro de uma casca de noz. Teologia mínima.
Duas cenas apenas. Primeira cena: a morte e o seu horror
parecem triunfar. Segunda cena: a vida sai do túmulo de
pedra, deixando-o vazio como uma casca de cigarra.


A Adélia diz: "De vez em quando Deus me castiga, me tira a
poesia. Olho uma pedra e vejo uma pedra..." Tem gente que
ouve o canto das cigarras e ouve apenas o canto das cigarras.
Tem gente que fala Páscoa e só vê ovo de chocolate. Pensam na
ressurreição como algo aconteceu, faz muito tempo, num lugar
distante. ( Impossível. mortos não ressuscitam. ) E pensam em
algo que acontecerá de novo num tempo distante, muito longe,
no futuro ( Impossível. Mortos não ressuscitarão.). Mas a
poesia não conhece nem o passado e nem o futuro. O passado
sobre que a poesia fala é presente na memória e nos
sentimentos. O futuro sobre que a poesia fala é presente na
esperança. Assim os poemas da ressurreição falam sempre do
presente. A Morte é agora. Nós somos o túmulo. "Quem anda duzentos metros sem vontade anda seguindo o próprio funeral vestindo a própria mortalha...' Muita gente morreu e não percebeu. Mas a Ressurreição pode acontecer também agora.


Tenho, no meu escritório, uma tela de Pierro della Francesca
( 1410 - 1492 ) chamada "Ressurreição". A pedra do túmulo
corta a tela em duas partes. Na parte de cima, com seu pé
sobre a pedra, o Cristo ressuscitado. Na parte inferior,
encostados à pedra, os guardas adormecidos. Perguntam-me
sobre o sentido da tela. Respondo que não sei o sentido da
tela. As telas têm muitos sentidos. Eu só posso dizer os
pensamentos que aquele quadro me faz pensar. E digo: enquanto
os guardas da morte estão dormindo, o divino que mora em nós
sai do sepulcro. Sabem disso as cigarras. Caminhando hoje pela manhã na fazenda Santa Elisa eu ouvi o seu canto. Já haviam deixado suas cascas nos troncos das árvores. Agora são seres alados. Cantam e voam, a procura
do amor...Acho que estão celebrando a Páscoa..."

 

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