domingo, 18 de janeiro de 2015

Fazer por fazer? Melhor não...

Os ingênuos podem supor que a alegria que sentimos ao fazer o que fazemos depende da importância que os outros dão ao que é feito. Felizmente, não é assim, porque senão, aos que fazem as tarefas chamadas menores, só restaria a frustrante sensação da insignificância. E com ela, o sentimento de inferioridade.
Como o percentual de façanhas extraordinárias é muitíssimo pequeno, parece lógico concluir que a fonte geradora de alegria pessoal depende mesmo é da qualidade do que fazemos, seja lá o que façamos.
Quando se trabalha em equipe, um conceito básico é que as tarefas de execução mais simples, aquelas que dispensam grande qualificação técnica e para as quais se consegue habilitação mais rápida, essas nunca poderão ser rotuladas como secundárias, sob pena de ruir todo o sistema. O exemplo que considero perfeito desta situação é o da faxineira do bloco cirúrgico. Quem definiria sua atividade como secundária, se uma infecção, decorrente de má assepsia, pode empurrar todo o brilhantismo técnico da cirurgia para o ralo da complicação, às vezes, irreparável?
A pergunta seguinte foi sobre a saúde da amada. Até preferia que ela tivesse um fôlego meio curto, para que ele não se sentisse tão diminuído.
A Amália também era viúva e, ao ouvi-la contar da saudade do seu velho, falecido no último inverno, senti que a minha missão de cupido não tinha a menor chance de prosperar, e me condoí da má sorte do Aristides, que, ignorando a indisponibilidade daquele coração, continuava animado com um sonho que preferi não desestimular. E até comentei com a Amália que, sem saber, ela estava ajudando o Aristides lá do fim do corredor, já que, ao vê-la, ele trocava a falta de ar da fibrose por longos suspiros de paixão. Ela riu encabulada, e comentou: "Velho descarado, brincando com o sentimento das pessoas carentes!".
Não insisti em aproximá-los porque, à época, não tinha a percepção exata de atemporalidade do amor, esta noção que os jovens ignoram, e por desconhecerem, ridicularizam a paixão dos velhos.
De qualquer modo, com uma fibrose terminal que lhe arroxeava os lábios depois do mísero esforço de uma frase qualquer, ele não teria fôlego para um declaração de amor. E dela, com um câncer terminal de pulmão, não se podia esperar ânimo para consolá-lo.
E então cuidei dos dois assim, embalando a fantasia dele e protegendo a carência solitária dela.
Nenhum deles tinha expectativa de vida de mais do que poucas semanas. Achei justo mantê-los alienados de uma realidade que não lhes convinha. Ele, animado com a fantasia de uma paixão juvenil irrealizável.
E ela, consumida de saudade. Tanta e sempre, que contam, quando é assim, pode até produzir o milagre reparador da ressurreição. Enlevados de amor, um pelo que fora e outro pelo que poderia ter sido, morreram os dois na mesma semana, sem terem trocado uma única palavra.
Aprendi, em funções de chefia, que a construção de um grupo diferenciado principia com a valorização da parcela de cada um, não apenas porque o reconhecimento profissional é um ingrediente indispensável na construção da autoestima individual, mas, principalmente, porque dele depende a espontaneidade do comprometimento.
Os simplificadores atribuem aos baixos salários todo o problema do desempenho medíocre, mas é um equívoco ignorar que não há estímulo econômico que coloque encanto no que se faça sem prazer. O mau humor de alguns profissionais bem remunerados e a tocante entrega afetiva de operários que mal ganham para a sobrevivência são a prova de que nos alimentamos também de uma energia maior que nos impulsiona e gratifica. E que, sem ela, nos transformamos em meros colecionadores de ressentimentos.
Era um enterro de uma pessoa querida e fiquei impressionado com o entusiasmo com que o coveiro rebocava os tijolos para o fechamento do sepulcro. Havia uma irretocável precisão de gestos quando cortava os fragmentos dos tijolos para que coubessem no espaço entre as peças maiores e, por fim, a colocação da pasta de cimento que preenchia todos os vãos, com notável destreza. Cheguei mais perto para ler o nome no crachá e percebi que o Valdemar adorava o que fazia e só não assobiava de contentamento em respeito à família que voltara a soluçar à medida que a colocação da lápide representava a materialização do adeus.
Quando começou a debandada, senti a necessidade de agradecer ao Valdemar. Naquele "de nada!" meio sussurrado havia uma dose de surpresa e incompreensão, mas apesar da vontade de abraçá-lo, não senti ânimo para explicar que vê-lo trabalhar com tanto gosto tinha sido a única coisa memorável de um dia muito triste. Sem ter ideia de qual seja o salário de um coveiro, preferi arquivar aquele desempenho como modelo de adaptação a uma tarefa difícil e até imaginei-o festejando em segredo: "Vocês podem não entender, mas eu duvido que alguém lacre uma sepultura como eu!".
A propósito disso, lembrei-me de uma passagem extraordinária, que descreve um diálogo que presumivelmente ocorreu entre Madre Tereza, que cuidava de leprosos, e um empresário texano. O milionário, vendo-a banhar carinhosamente um daqueles pobres pacientes, disse: "Irmã, eu não faria este trabalho nem por um milhão de dólares". E ela respondeu: "Eu também não, meu filho"
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JJCamargo

Cegos e Cozinheiros...

                                                                                 


As pessoas cegas e os cozinheiros têm mais afinidades do que se acredita.
 Ambos precisam da previsibilidade, do olfato e dos barulhos mínimos.
 Na casa de um cego, mudar um único móvel de lugar provoca uma fatalidade ou um tempo imerso no aprendizado no escuro, uma redescoberta de espaço.
 No espaço de um cozinheiro, mudar os ingredientes, as vasilhas e os azeites de lugar, torna urgente e necessário reaprender o que se sabe e através disso, como o cego, encontrar um novo jeito, sabor, caminho. 
Somente os cegos e os cozinheiros sabem que os cheiros têm a alma mais profunda do que o gosto e que é só através dele que podemos distinguir o doce do azedo, e o amargo do picante. 
Também somente os cegos e os cozinheiros compreendem quando o fogo quer ficar só, e escutam o canto das bolhas de fervuras.
 Porque são apenas eles que sabem porque na escrita braile uma linha continua é uma grande interrogação, que acaba exatamente quando se precisa.


Cristiane Lisbôa.

Ana Jácomo


Enya...


domingo, 4 de janeiro de 2015

As sete leis espirituais do sucesso...


Roseana Murray


Cônica sobre um gato...

                         

Hoje escrevo de rastos. Morreu-me o gato. Mas foi muito mais do que um gato. Há quase 20 anos, o meu relacionamento com a minha mulher tinha apenas alguns meses. Um dia, na SIC, andava por lá uma menina com uma cesta com gatinhos recém-nascidos. Esta menina tinha sido apanhada pelo nojo injusto de uma leucemia. Era muito pequena, nunca saberemos se percebia bem o que o destino malvado lhe reservava. E daí, talvez soubesse, naquela sabedoria serena das crianças e dos animais, esse instinto com o qual temos tanto a aprender. Ela devia perceber, porque andou a recolher gatinhos no seu quintal, deixados por uma qualquer gata que tinha desaparecido. Recolheu-os a todos numa cesta, e nessa visita à SIC tentava encontrar quem ficasse com eles. Como se fosse o seu último gesto: não partir sem resgatar a vida dos bichos indefesos. Uma das pessoas que a menina abordou foi a minha mulher. E foi assim, sem hesitação, que o gato veio para nossa casa. Sim, foi há quase 20 anos, o que significa que o gato viveu todo este tempo, desafiando todas as estatísticas. O que significa, acima de tudo, que esteve connosco todo o tempo da nossa vida de casal. Todo. Foi um gato a sério. Altivo, desconfiado, senhor do seu nariz. Viu aparecer lá em casa um cão, depois outro, e cedo lhes demonstrou quem mandava na matilha. Pelo caminho, foi recebendo festas dos meus amigos, e foi arranhando os filhos dos meus amigos. Aqui há uns anos, tornou-se um gato obeso, enorme, quase uma atracção de feira. Ficou diabético, passou a comer ração especial, mais não sei quantos comprimidos. Manteve sempre a postura, soberbo. Miava se cheirava peixe no forno. Os meus amigos brincavam com o seu tamanho desmesurado. Fazia parte da nossa casa. Há uns meses largos, foi emagrecendo, emagrecendo. Tornou-se quase o gatinho que trouxemos um dia da SIC, resgatado pela menina que iria partir em breve. Definhou. Foi desistindo. Na manhã do dia em que morreu, peguei nele para o mudar de sítio (já não conseguia sozinho), e cabia todo na minha mão, um saquinho de pêlo quente, no qual se sentiam todos os ossos. No dia seguinte à sua morte, dei por mim a fazer os gestos do costume, fui ainda verificar se a sua tigela tinha água. Mas a tigela já lá não estava. Devo ter de habituar-me. Por enquanto, limito-me a pensar se fiz tudo: se lhe dei as festas todas, se o tapei nas noites frias, se brinquei com ele nas tardes de verão. O veterinário garante-me que sim, que devemos pensar que ele foi um gato feliz, e que é nisso que devemos concentrar-nos agora. O veterinário foi uma pessoa especial. É uma pessoa especial. Obrigado por tudo, dr. Pedro Fachada. Não tive qualquer problema de chorar em frente a ele. Conheço poucas pessoas tão sensíveis e delicadas. Chorei em frente a ele, e choro aqui em frente de todos os que me lêem. Não quero saber se sou piegas. Não tenho medo de parecer ridículo: o meu amor pelos animais será sempre maior do que isso. Morreu-me o gato, morreu uma parte importante da minha vida com a minha mulher. Vou ter de habituar-
-me. Não sei se me habituo.

Rodrigo Guedes de Carvalho 

sábado, 3 de janeiro de 2015

A quem pertencem nossos filhos?

                                                   



A um dos mais importantes filósofos do século XIX, Friedrich Nietzsche, é atribuído o ensinamento de que os nossos filhos são, na verdade, filhos da vida. O mesmo filósofo escreveu que “a maturidade do homem consiste em ter reencontrado a seriedade que tinha no jogo quando era criança” e a célebre frase “o que não me destrói me faz forte”. 

As três lições de vida me vieram à mente no decorrer dos dias que antecederam o Natal, no exercício da advocacia. Inúmeros processos definindo guarda e regulamentação de visitas foi objeto de verdadeiro mutirão nos dois cartórios de Varas de Família da Comarca de Santa Maria. Certamente o mesmo ocorreu em diversas outras cidades. Todos com objeto similar: com quem a criança iria passar as festas de final de ano e as férias de verão.

Entre as partes envolvidas, crianças e adolescentes, genitores guardiões e não guardiões, e avós paternos ou maternos. Na condução dos processos advogados, promotores, psicólogos, assistentes sociais, serventuários e juízes... Verdadeiras lutas e acirramento de ânimos que exigiram longas avaliações, mediações, instruções processuais e, finalmente, a decisão judicial terminativa ou temporária, de acordo com cada caso.

Esse aparato judicial que se forma em torno de questões tão singelas é a imagem da imaturidade humana no trato das questões que envolvem sentimentos. A cegueira emocional, formada especialmente pela revolta e desejo de vingança, impede que se possa ter um olhar racional e, ao mesmo tempo, amoroso para os nossas crianças e adolescentes.

Na vida de nossos filhos não há exclusividade de papéis e relacionamentos. Ela é muito mais ampla e rica do que possamos pretender. Por isso não temos como protegê-los ou gerenciá-los incessantemente. Eles não pertencem a ninguém, estão nesse mundo através de nós, sob a nossa responsabilidade, mas são filhos da vida e para ela devem ser preparados. Além daqueles que lhe deram a vida, nossos filhos integram um grupo familiar cujo laço que os une é a afetividade. Ninguém tem o direito de lhes negar o acesso a esse afeto e convivência.

Quando os genitores entram em litígio acerca de detalhes tão pequenos como divisão de férias, Natal e Ano Novo, necessitando de um verdadeiro aparato judicial para tal definição, atestam uma imaturidade que prejudica essencialmente os próprios filhos. Talvez pudessem reencontrar essa maturidade compreendendo que a suportabilidade da dor, da insegurança e do medo, pode lhes fortalecer e auxiliar na busca de uma superação de suas angústias.

Quem sabe os pais, ao superarem a necessidade da intervenção judicial na resolução das questões que envolvem seus próprios filhos, possam deixar florescer o verdadeiro afeto que seus pequenos merecem. Aquele amor isento de egoísmo, onde o verdadeiro bem estar e melhor interesse da criança e do adolescente possa efetivamente acontecer, como dispõe a nossa lei maior. O instrumento para tanto é o diálogo. Um diálogo tão sério e honesto quanto àquele que a criança apresenta nas suas práticas de jogos e brincadeiras, como referiu Nietzsche.

Bernadete Santos