segunda-feira, 25 de março de 2013

Envelhecer bem é possível...

Se não aceitarmos que já não somos o que éramos, nosso contato com o mundo aqui e agora fica prejudicado



A criança passa por dramáticas transformações (andar, falar, conhecer o mundo etc.), mas não tem consciência delas porque lhe falta linguagem para descrevê-las.



Depois da adolescência as mudanças continuam, mas com dramaticidade menor.



Tão marcante em transformações quanto a infância é o envelhecimento. Nessa fase da vida temos consciência de tudo o que ocorre: perdas físicas e mentais.



Comecemos falando da reação aos imprevistos. Por que velho tropeça e cai tanto? Porque a reação ao susto e o reflexo para evitar o perigo são mais lentos.



Falemos agora da memória, essa capacidade madrasta cuja falta castiga o idoso. Demoramos para lembrar seja lá o que for e a conversa fica entrecortada de silêncios, quase soluços.



O conteúdo que em primeiro lugar mergulha nas sombras do esquecimento são os nomes próprios; mais uns anos e substantivos comuns também se embaralham.



O curioso é que os adjetivos não somem. Aparecendo o nome, sua qualidade ou quantidade vem junto, dos fundos da memória. O nome está em algum lugar, algum tempo, de algum jeito. Se o substantivo emerge, traz consigo as associações.



Os verbos não somem, mas as ações deixam de ser desempenhadas. Se o verbo desaparecer, a incomunicabilidade irá se instaurar.



Envelhecer é perder: seja clareza, seja acuidade auditiva ou visual, velocidade de resposta física ou de linguagem, memória.



Aí vem aquela história: velho esquece o agora e lembra o mais antigo. Não há nenhum mistério nisso. É que o antigo já se transformou em imagem e a imagem reaviva as sensações. Quase nada é inconsciente, pois envelhecer é viver as mudanças diárias.



Sentimos a presença das mudanças. Se causam amargura, é pela não aceitação. E, se não aceitarmos que já não somos o que éramos, o nosso contato com o mundo aqui e agora fica prejudicado.



Assim como é natural o ser humano se transformar ininterruptamente, em boa velocidade, do nascimento à puberdade, é natural envelhecer, com lentas perdas no início e mais rápidas depois.



Aceitando que viver é assim, permanente transformação, podemos sorrir diante de perdas e transmitir (até com humor) a quem nos rodeia que estamos presentes, acompanhando o processo.



Nada de dizer que a terceira idade é maravilhosa. Nada disso. Perder não é bom. Mas alguns conseguem ir perdendo sem muita amargura, porque acompanham as transformações dos que ainda estão ganhando.



É a alegria do avô diante do neto. Há na atitude de acompanhar o que já tivemos no passado doses de aceitação e generosidade. Podemos ajudar. Nossa sabedoria funciona como conforto para quem está só começando.



O olhar bondoso do idoso diante do tatibitate do nenê é sabedoria. O velho vislumbra o caminho que o bebê irá seguir. Não é um reviver nem um renascer: é uma memória.

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* ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) e "Educação ou o quê?" (ed. Summus)

 

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