sexta-feira, 30 de maio de 2014

Desligue o celular e olhe o céu...



Os dias transcorrem, a alegria pisca à nossa volta, a paz acena lá de longe com um lenço branco. A felicidade
passa por nós e sussurra algumas palavras em nossos ouvidos, ocupados demais com fones sofisticados e outras traquitanas tecnológicas para ouvi-las.
Neste movimento de autorrecolhimento ou auto expulsão simultânea dos clamores do mundo exterior, nos enredamos em um útero ou uma bolha de propriedade exclusivamente nossa. Espaços volitivamente autistas. Impenetráveis. Com nossos ipods, celulares e smartphones caríssimos, somos, nos tempos atuais, conhecidos como integrantes da “geração cabeça baixa”.
Àquela geração para a qual tudo, todos os interesses contemporâneos, se resumem na aquisição sucessiva da mais filigranada e arrojada tecnologia. A ideia é nadarmos nas piscinas da realidade interseccional. Mesclarmos o off line com o online, indistintamente. Como quase-androides ou ciborgues.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Simulando gueixas pós-digitais, nos rendemos definitivamente aos comandos dos games, consoles, dos contatos intermináveis com outros seres virtuais — distantes do alcance das nossas mãos — enquanto deslizamos nossos ágeis dedos pelas telas frias desses gadgets que nos dominam. Agimos assim, como escravos que já nos tornamos da feérie tecnológica.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Na hora de dormir a trepada é rápida, ocorre num átimo, sem sofreguidão, pois já faz tempo que os anseios da carne e do espírito foram trocados pelas maravilhas neo-maquínicas, desfilando em série ante nossos hipnotizados olhos. Google Glass, smart-watches, tabletes velocíssimos se refestelam nos poltronas de nossa gula proliferada, feito câncer.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?

Será tão difícil encararmos os olhos apaixonados do nosso namorado ou namorada, desfrutarmos do enlevo promissor, nos entregarmos a aconchegos carnais explícitos, ternuras e acarinhamentos nascidos do veludo das nossas mãos? Roçar nossa boca quente em outra, provando salivas mornas, intercambiando corporeidades, lábios umedecidos de desejo pleno e aceso.
Quando conseguimos — fato muito raro — nos deter naqueles abençoados momentos, desativar o botão da pressa e virarmos lentamente a cabeça para enxergar o que nos circunda é motivo de especial comemoração. A alegria tenta flertar conosco novamente, pois ela não desiste de tocar nossas anestesiadas emoções. A paz busca se aproximar dos nossos sonhos, cultivando uma paciência desmesurada, até que a abracemos. A felicidade aguarda que possamos decifrar, por instantes que seja, tantas preciosidades que ela tenciona sussurrar em nossos ouvidos.

Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Tornarmo-nos gente, apresentar com orgulho, nos círculos sociais que frequentamos o ser humano de carne e osso que nos compõe. Mas gente saiu de moda, infelizmente. Gente é algo lento, palpável, desagradável. Quase repugnante, até, a possibilidade de farejarmos e descobrirmos o funcionamento de outros corpos em meio a realidades aceleradas e frias. Não revelamos essa triste verdade para ninguém. Esta sensorialização inundada de odores hormonais que se imiscui em nossa fisiologia.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Aquela infinita imensidão azul, cujo início remonta a séculos imemoriais, o paraíso perdido e doce. A promessa de voos e bailados por entre suaves nuvens. Um sopro de vento talvez nos conduza ao cimo de uma árvore de cujos galhos pendem frutos saborosíssimos. Seguem-se riachos, cachoeiras, pradarias. O grito silencioso dos inúmeros tons de verde impregnados na paisagem ondulada e envolvente. Pássaros de todas as cores, flores belíssimas, animais silvestres, insetos faceiros como borboletas, joaninhas e gafanhotos ensaiam danças à nossa volta.
Mas não os percebemos. Porque ainda é difícil viver e respirar sem distrações. Amar devagar, com leveza. Entregar-se à delicia das cores vivas, longas caminhadas em trilhas virgens de florestas cuidadas por duendes e gnomos. Mergulhar nas profundezas do mar, buscando desvendar imensuráveis segredos, escondidos em algas, cavernas, corais. Depois retornar à superfície e olhar para o alto, erguer os braços imiscuindo -nos nesse azul recheado de promessas que tingem a imensidão celeste.
Quem sabe neste exato instante, passemos a olhar para a frente, para os lados, para o céu. Girando a cabeça mais livres e conectados com o universo. Mais felizes e humanizados. Esquecendo, inclusive, nossos celulares desligados, em algum bolso da calça.

Revista Bula...

Fotografia...



"Uma fotografia inesquecível não é a tecnicamente mais perfeita ou artística.
 É aquela que tem a conexão mais íntima e profunda como o momento,
 de modo que o espectador a sinta."

 George Lange, fotógrafo

Um dia...

                                                     


Um dia virá
em que a minha porta
permanecerá fechada
em que não atenderei o telefone
em que não perguntarei
se querem comer alguma coisa
em que não recomendarei
que levem os casacos
porque a noite se adivinha fresca.

Só nos meus versos poderão encontrar
a minha promessa de amor eterno.

Não chorem; eu não morri
apenas me embriaguei
de luz e de silêncio.


Rosa Lobato de Faria

Você tem o dom de escutar???

                               

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar.

Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.

Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem.

Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou". Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.

Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia e que de tão linda nos faz chorar.

Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.
Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.




Rubem Alves

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Tardes de Maio...



Nas tardes de Maio as horas circulam pela nossa vida como o vento circula pelas montanhas, arremessando coisas,
suavizando outras, às vezes refrescando o dia, denunciando temores ou realçando a beleza, tudo sem que se veja, mas sentindo-se plenamente.
As horas passam pela nossa vida e difícil mesmo é colher delas a verdadeira dimensão, saber o quanto são únicas.
As tardes de maio morrem devagar sobre o olhar sereno, como deveriam ser todas as mortes.
Na doçura da tarde, os pássaros de inverno bordam as direções do olhar, dispersando
aqui e ali as melhores intenções sobre o que deverá ser a felicidade ou a liberdade servida ao ritmo natural das estações.
Como num tecido muito artesanal, as tardes de maio bordam o dia no coração,
na esperança de ter algo melhor para ser ou oferecer ao instante seguinte,
nesse maravilhoso mistério da vida.
Sônia Schmorantz

segunda-feira, 26 de maio de 2014

A filosofia dos gatos...



Olho para o meu gato e medito. Medito teologias. Diziam os teólogos de séculos atrás que a harmonia da natureza deve ser o espelho onde os seres humanos devem buscar suas perfeições. O gato é um ser da natureza. Olho para o gato como um espelho. Não percebo nele nenhuma desarmonia. Sinto que devo imitá-lo.
Deitado numa almofada ele se entrega, sem pensar, às delícias do calor macio. Nesse momento ele é um monge budista: nenhum desejo o perturba. Desejos são perturbações na tranquilidade da alma. Ter um desejo é estar infeliz: falta-me alguma coisa, por isso desejo… Mas para o meu gato nada falta. Ele é um ser completo. Por isso ele pode se entregar ao calor do memento presente sem desejar nada. E esse “entregar-se ao momento presente sem desejar nada” tem o nome de preguiça. Preguiça é a virtude dos seres que estão em paz com a vida.

Por pura brincadeira escrevi um livrinho sobre demônios e pecados. Tudo ia muito bem até que cheguei ao pecado da preguiça. Preguiça é fazer nada. Nossa tradição religiosa nada sabe da espiritualidade oriental do Taoísmo que faz do “fazer nada”, “wu-wei”, a virtude suprema.

Alguém disse que preferia os gatos aos cachorros porque não há gatos policiais. Policiais existem para fazer cumprir a lei, o dever. Dentro de mim, desgraçadamente, mora aquele cão policial que Freud deu o nome de “super-ego”: ele rosna ameaças e culpas todas as vezes em que me deito na rede.

Meu gato, na sua imperturbável preguiça, me dá uma lição de filosofica. Não me dá ordens. Ele deve ter aprendido do Tao-Te-Ching que diz que o homem verdadeiramente bom não faz coisa alguma…

Assim, proponho que se acrescente ao direitos humanos já escritos, um outro, para os velhos: “Todos os velhos têm o direito à felicidade da preguiça.” Pois, como o Riobaldo disse: “Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso”.


Rubem Alves

Soneto de Aniversário...



Passam-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida

Queira-se antes ventura que aventura
A medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura

E eu te direi: amiga minha, esquece
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece


Vinícius de Moraes

sábado, 24 de maio de 2014

Minha Criança...





"Peço licença para falar na minha criança, a que mora aqui dentro e não me abandonará jamais. Talvez com a morte eu até regresse a ela. Os quase setenta anos que dela me separam não a removem. Ela ali está, magra e tímida, a me olhar e ditar comportamentos e reações.


Minha criança esteve em todos os meus filhos e aparece nos meus sete netos. Ela se refaz da morte da irmã e abre os olhos para o mundo, com a certeza de que veio ao mundo para alguma missão, embora sempre se considere inferior ao tamanho da mesma.

Minha criança sente enorme saudade de pai e da mãe com quem o adulto já não conta salvo no exemplo, na saudade e nas orações quando me domina uma fugidia sensação de estarem, incorpóreos, a meu lado, mas sem se manifestarem.

Minha criança possui incomensuráveis solidões diante do mistério do infinito. Ainda recua diante do violento, embora não o tema, e ainda se infiltra em episódios de distração e inocência inexplicáveis num homem com minha carga de vivências. Minha criança ainda gosta de abraço caloroso, proteções misteriosas e de um modo de rezar que o adulto nunca mais conseguiu tais a entrega e a total confiança no mistério e na proteção de Deus.
Minha criança carrega o melhor de mim, é portadora de meu modo triste de falar de coisas alegres e de algum susto misterioso sempre que se lhe impõe alguma expectativa d enfermidade. Minha criança é inteira, mansa, bondosa e linda. Eu a amo, preservo, e dou boas gargalhadas quando a vejo infiltrar-se nas graves decisões de algumas de minhas responsabilidades adultas. Ninguém a vê, salvo eu. Ninguém a acaricia, salvo eu, que a estimo, procuro e admiro mais a cada dia e com quem converso histórias infinitas, que somente a imaginação pode conceber no universo maravilhoso da fabulação interior e solitária.
Diariamente passeio com minha criança e estou muito feliz por cumprimentá-la, levar-lhe balas, nuvens, aquele cão da meninice, as canções de minha mãe e os carinhos de meu pai, levar-lhe os presentes que ganhava de meu padrinho e toda a enorme vontade de Ser que então adivinhava para a minha vida. Vida que chegou, ameaça passar, e da qual não me arrependo.
Minha criança adivinhou em seus sonhos o adulto que eu queria ser. E traz alegria e esperanças à minha idade atual. Hoje sou, há muito tempo, o adulto que sonhei ser. Talvez com menos tensões, mas igualzinho em meu modo de amar a vida."


Artur da Távola

O Amor Maduro...

                                                         



O amor maduro não é menor em intensidade. Ele é apenas quase silencioso. Não é menor em extensão. É mais definido, colorido e poetizado. Não carece de demonstrações: presenteia com a verdade do sentimento. Não precisa de presenças exigidas: amplia-se com as ausências significantes.
O amor maduro tem e quer problemas, sim, como tudo. Mas vive de problemas da felicidade. Problemas da felicidade são formas trabalhosas de construir o bem e o prazer. Problemas da infelicidade não interessam ao amor maduro.
Na felicidade está o encontro de peles, o ficar com o gosto da boca e do cheiro, está a compreensão interior, a emoção vivida em conjunto, os discursos silenciosos da percepção, o prazer de conviver, o equilíbrio de carne e espírito. Carne intensa, alegre, criança, redescobrimento das melhores dimensões pessoais e alma refeita, abastecida de todas as proteções necessárias, um enorme empório de afinidades acima e além de meras concordâncias intelectuais. Os problemas daí derivados são os problemas da felicidade. Problemas, sim, alguns graves. Mas estalantes de um sentimento bom.
Na infelicidade estão a agressão, o desamor, o não conseguir, a rejeição, a dor, o cansaço, a troca com perda, a obrigação, o cansaço, o tédio, o desencontro, o insulto, o ciúme machucante, as futricas de famílias, as peles se eriçando e os toques que dão susto. Os problemas da infelicidade não devem ser trazidos para a trama do amor maduro. O amor maduro é sólido e definido. Mas estranhamente se recolhe quando invadido pelos problemas da infelicidade que fazem glória ao amor imaturo. Acaba acabando.
O amor maduro não disputa, não cobra, pouco pergunta, menos quer saber. Teme, sim. Porém não faz do temor argumento. Basta-se com a própria existência. Alimenta-se do instante presente valorizado e importante porque redentor de todos os equívocos do passado. O amor maduro é regeneração de cada erro. Ele é filho da capacidade de crer e continuar. É o sentimento que se manteve mais forte depois de todas as ameaças, guerras ou inundações existenciais com epidemias de ciúme, controle ou agressividade.
O amor maduro é a valorização do melhor do outro e a relação com a parte de cada pessoa. Ele vive do que não morreu mesmo tendo ficado para depois. Vive do que fermentou criando dimensões novas para sentimentos antigos, jardins abandonados cheios de semente. Ele não pede, tem. Não reivindica, consegue. Não persegue, recebe. Não exige, dá. Não pergunta, adivinha. Existe, para fazer feliz. Só teme o que cansa, machuca ou desgasta.
O amor maduro não precisa de armaduras, coices, cargos, iluminuras, enfeites, papel de presente, flâmulas, hinos, discursos ou medalhas: vive de uma percepção tranquila da essência do outro. Deixa escapar a carência sem que ela pareça paupérrima. Demonstra uma dependência sem que ela se manifeste humilhante.
O amor maduro cresce na verdade e se esconde a cada auto-ilusão. Basta-se com o todo do pouco. Não precisa nem quer nada do muito. Está relacionado com a vida e sua incompletude, por isso é pleno em cada ninharia por ele transformada em paraíso. É feito de compreensão, música e mistério. É a forma sublime de ser adulto e a forma adulta de ser sublime e criança.
É o sol de outono: nítido, mas doce. Luminoso, sem ofuscar. Suave, mas definido. Discreto, mas certo.
Um sol, que aquece até queimar.
(Trecho do livro: Do Amor, Ensaio de Enigma – Artur da Távola)

Embrulhe-me com jornal...

                                                                                 



Como ler jornal várias vezes. Não há nenhuma notícia de interesse, nota e fato que despertem atenção, mas ainda assim volta-se a pegar o jornal para passar o tempo. Conhece-se o conteúdo, espia-se as editorias de novo, repassa-se as chamadas e a atitude é repetida à exaustão. Do início ao fim, do fim ao início. Os cadernos, os anúncios, as colunas, os obituários, as notícia recebem democrática distração. O jornal revela uma companhia fiel, como um cão ou um copo com gelo. Será lido até que se torne inofensivo. No balcão do zelador, na mesa da manicure, na escrivaninha de um arquiteto, será sacado o exemplar amarfanhado para cobrir o intervalo e a breve folga. Durará uma semana em um único dia. De dobrado e manuseado, terá estrias de deserto. Como explicar essa teimosia? É como se houvesse códigos ocultos entre as letras, um suspiro de sentido, uma descoberta a fazer. A mensagem cifrada não é para ser conhecida, a procura é a chegada. O jornal é relido pela esperança de que alguma coisa mudará de um minuto a outro, de que uma notícia que nos diz respeito aparecerá de repente. Assim me sinto com os filhos. É o mesmo texto lido de forma diferente. Ler de forma diferente é reescrevê-lo, apesar de não ter mudado absolutamente em nada o arranjo das páginas e a ordem dos parágrafos. Os filhos não são os pais, os filhos são o que eles precisam. Não os elogio quando parecem comigo, porém quando se parecem com as suas próprias verdades. Aqui faço um apelo a quem lê sua vida com a insistência de um jornal. Aqui faço um apelo aos pais que se separaram e cuidam dos seus filhos em casas separadas. Não fale mal do ex ou da ex na frente da criança, não subestime a sensibilidade dela. Se não consegue resolver seus problemas, ao menos não os aumente. A criança não merece herdar o seu ódio, o seu desafeto, a sua raiva. A criança não foi casada com a mãe ou com o pai, não adianta transferir as broncas. Não há continuidade espontânea, é sempre induzida. A herança genética não é uma religião, com velas acesas diante de santos. E não falo de palavras, e sim das caretas, do esgar, do repuxo das sobrancelhas. O filho capta o desprezo ou a indiferença nos gestos. No telefonema seco e irritante. Nas piadas mórbidas. Até no silêncio e na omissão. Palavra é também o que não nasce da boca. Sua experiência represará o sangue dos filhos e pode reprimir possíveis e autênticas escolhas. E eles se verão divorciados, desquitados e viúvos antes de casar. Já houve uma separação, para quê duas? Não diga que o ex ou a ex não presta, porque não encontrou utilidade como queria. Não houve futuro ao casal, então que não se apague o passado. Os anjos conhecem o inferno por ouvir falar. Falar já é fazer o inferno. Depois não adianta procurar um psicólogo para o filho e argumentar que não o entende. Ele se vê dividido entre duas chantagens, entre duas promessas, entre duas vidas. É natural explodir, cobrar e se desesperar. A criança mal se aprendeu e precisa optar por aquilo que não viveu. Não tirou a carteira de identidade e é obrigado a definir sua assinatura. Trata-se de uma carga excessivamente nociva para sair com a urina. Duvido de todo amor que se transforma em vingança, da confiança reduzida à represália, do conselho que vira ameaça, da proteção que termina em dependência. É desumano transformar o filho em garoto de recados. É desumano fazer indiretas, confundir onde existe lealdade, invejar os segredos que não foram contados. Toda guerra é suja, ainda mais a psicológica, onde crianças são usadas como escudo humano para parcelar dívidas. Na ausência de amizade, serve a cordialidade e o respeito. Para ser pai ou mãe, é necessário ter sido filho e não ter esquecido. Como ler jornal várias vezes.


Fabrício Carpinejar  

Pombos...



Os Pombos

 - poemas dedicados aos pombos da nossa cidade




Os pombos  
da cidade,
que vivem da caridade
de quem os possa ajudar.
Pombos meigos e amigos,
são tão
bons como mendigos
para quem lhes passa a dar Amor!


Ariana Oliveira



Pombos da minha cidade
que dizem a verdade.
Pombos bonitos
e tão amigos!



Pombos meigos
e mendigos
que querem ter pombais,
onde partilhar seu amor
com outros pombos mais.



João Ameixa



Pombos bons
todos tão atraentes
às vezes parecem tontosa comer migalhas.
Tão queridos
Tão bonitos,
dormem em velhos beirais
nunca tiveram pombais.



João Pereira



Os pombos
Da minha cidade
são tão belos.
Vivem da caridade,
têm cores da tristeza
cores da alegria e
cores do amor.
São pombos mansos
e carinhosos.



Miguel Sobral



Pombos meigos
juntos em revoada à procura de alimento.
Todos muitos amigos
Uns às cores, outros cinzentos.



Pombos muitos amigos
se não lhe fizerem mal
dormindo nos beirais
Pois não têm pombais.



Ruben Elias



Os pombos da minha cidade
que dizem sempre a verdade
a quem os trata com amizade…
Os pombos não são mendigos
eles são tão amigos.
Por favor não os trate com maldade.



Paula Caliman

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Mãe de cachorro também é mãe?


Eu confesso: ontem, passeando pelo shopping, dei dicas para o meu marido sobre o que gostaria de ganhar
no Dia das Mães. O problema é: não sou mãe. Pelo menos não no sentido mais real – ou comercial – da palavra. A única criatura que trato como filho em casa é o meu cachorro, um vira-lata chamado Dunga, que tem dois anos.
Me considero mãe do Dunga, mas sei que o assunto divide opiniões. Me deixa explicar meu lado, por favor. Quando adotamos o Dunguinha, redescobri um sentimento de amor diferente, que não sentia desde que ganhei a Bellinha (minha primeira cachorrinha, quemorreu em outubro do ano passado aos 13 aninhos). Minhas amigas, quando têm filhos, dizem que algo acontece como um passe de mágica ao ver a carinha do bebê pela primeira vez. Minha sobrinha (sim, sou tia-avó) teve seu bebê em 18 de abril e, apesar de estar morrendo de cansaço, passou a madrugada toda olhando para o filho no bercinho misturando sentimentos de alívio pela saúde do pequeno, de encantamento e de descobrir que ser mãe era ainda melhor com o baby fora da barriga, ao alcance dos seus beijos.
Amo, adoro, idolatro o meu cachorro, mas sou obrigada a admitir que entendo quem fica indignado quando ouve a expressão “mãe da cachorro”. Em nome de todas que se autointitulam “mães de cachorro”, tomo a liberdade de explicar nosso ponto de vista mais um pouquinho. Nos sentimos responsáveis pela vida daquele animalzinho. Damos comida, remédio, banho, ficamos atentas à saúde, queremos que seja feliz – se jogando numa poça de lama ou roendo nossa almofada preferida. Para quem não tem filhos biológicos – como eu – é o sentimento mais próximo de ser mãe que conheço. Então, por achar que ser mãe de um bebezinho é algo tão nobre, tão digno e um desejo meu tão grande, me sinto invadida por orgulho quando dizem que sou mãe deste senhorzinho de quatro patas aqui ao meu lado.
Na sexta-feira, eu mandei o filho que tenho para a pet shop para tomar um bom banho. Na volta, surpresa: os proprietários mandaram para as mães – ou donas – uma flor e um cartão.
cartao

Fiquei envaidecida, pois o que estava escrito ali traduzia o que me faz sentir mãe de cachorro. Escolhemos, eu e meu marido, o Dunga através de uma listinha de cachorros abandonados e vítimas de maus tratos. O acolhemos, ensinamos a não ter medo de nós e a se acostumar com as coisas boas da vida (no caso, ter comida, água, banho, remédios e amor todo dia). Levei em veterinários, li livros como sobre como fazer meu dog se sentir mais acolhido e menos medroso. Por ter vivido muito tempo na rua, foi espancado, pegou chuva e sabe-se lá mais o que. Eu queria que ele entendesse que nada mais daquilo iria acontecer. É o mais próximo que até hoje vivi de um sentimento materno.
Soube que alguns psicólogos “receitam” cachorros para casais indecisos sobre ter filhos. Entendo. A dinâmica do meu relacionamento mudou muito depois que o Dunga chegou aqui em casa (a querida Bellinha morava com a minha mãe). Reorganizamos nossos horários para levar para passeios, banho, consultas. Incluímos sacolinhas para recolher cocô na lista de compras. Quando um de nós está cansado ou extremamente atarefado, o outro dá uma dose dupla de amor e carinho para o cachorro.
Quando eu era pequena, dizia ser mãe das minhas bonecas e ninguém questionava. Era impossível, pois se tratava de pano e pelúcia, mas dentro de mim o sentimento era parecido com o de maternidade. Eu cobria a Peposa (quem é da década de 80 lembra dela) antes de dormir, dava bom dia ao acordar, trocava a roupa dela. Minha família achava bonitinho. Hoje, tem gente que estranha quando me avanço de beijos no cachorro e digo um “vem aqui com a mãe” no meio da rua. Sei que é diferente. Mas o sentimento, aquele lá dos tempos da boneca, é o mesmo.
Tenho a humildade de reconhecer que só saberei o real sentido da maternidade ao sentir um bebezinho mexendo dentro de mim e vendo aquele pequeno depender totalmente dos meus cuidados. Não, espera aí. Eu também penso exatamente igual sobre adotar uma criança. Ela não terá sido gerada por mim, não terá se mexido na minha barriga, mas vai depender do meu empenho e a partir dela me sentirei mãe.
A minha mãe me criou trabalhando muito, às vezes ficando uma semana inteira sem falar comigo (quando saía, eu estava dormindo; quando chegava, eu já estava dormindo de novo). Eu sentia que nossa convivência era diferente quando comparada com a de amigas e primas, que tinham suas mãe como donas de casa ao seu lado o tempo todo. Mas nunca, nunca, nunca, me senti menos filha ou vi a Dona Nelma menos como mãe. Sempre soube que ela estaria ao alcance de um telefonema se eu precisasse. E isso me preenchia de novo com o sentimento de ter mãe como todos os meus amigos tinham.
Voltarei a escrever sobre o assunto quando tiver um bebê. Talvez eu volte atrás em todas as minhas convicções e diga que ser mãe é “isso aqui, não aquilo que eu tinha com o cachorro”. Talvez não. E eu aposto no não. Não dizem que “pai é quem cria?”. Pois mãe é quem dá amor, cuidados, pensa no futuro de seu amado e torce pela sua felicidade. É por isso que peço: tenham paciência com esse pessoal que dizer ser mãe de cachorro. Não queremos ofender. Só queremos apontar que somos cheias de amor por um serzinho que depende de nós tanto quanto um bebezinho depende de sua mãe biológica – se não dermos ração ou o peito, não sabem ir sozinhos para o fogão e preparar uma omelete.
Espero com ansiedade o dia de entender se existe ou não um sentimento diferente sobre ser mãe de criança ou mãe de cachorro. Por enquanto, só quero que meu filho de quatro patas tenha conforto e amor incondicional. E essas são duas qualidade de mãe, não são?
cachorro
Eu e Dunga pelas lentes da fotógrafa Andréa Graiz

quinta-feira, 22 de maio de 2014

O despertar da compaixão...



  


Saiba diferenciar e experimentar a verdadeira compaixão

Compaixão é amor, sim. Mas uma espécie particular de amor, que pode ser vivenciado de diferentes maneiras. Pode ser exercitando a paciência, a tolerância, um estar perto em silêncio. Ter compaixão é olhar para o outro e ver o que ele precisa naquele momento. Pode ser um abraço apertado, uma bronca, uma orientação, uma ajuda material. A única condição essencial é que qualquer uma dessas ações parta do coração e que corresponda ao que é preciso naquele instante. Mas compaixão está a léguas da pena. Quem tem pena, muitas vezes, não ama verdadeiramente.
"Ter compaixão significa aliar amor e sabedoria", disse o mestre Geshe Lhakdor, um especialista em filosofia budista. Porque é preciso sentimento, sim, mas também um certo domínio da situação e inteligência. "Para ajudar o outro, compartilhar sua dor, é preciso estar inteiro, íntegro, e não caindo aos pedaços, emocionalmente falando", diz a psicóloga Ana Maria Silva, que dá suporte aos contadores de histórias da Associação Viva e Deixe Viver.

Os cinco tipos

Mas compaixão não é uma coisa só, um sentimento inequívoco que se apresenta de apenas uma maneira. O lama budista gaúcho Padma Samten conta como se manifestam os cinco aspectos diferentes da compaixão, relacionando-os às cinco cores (ou energias) emanadas pelos budas primordiais. "Na compaixão azul, por exemplo, olhamos para quem sofre e o acolhemos com ternura", diz ele. "E perguntamos interiormente: 'Quais as potencialidades e qualidades escondidas nesse ser? Como ele pode desabrochar?' E o ajudamos a seguir essa direção", explica.

A compaixão amarela está ligada à generosidade e à riqueza. "Então, quando vamos ajudar alguém, nós podemos não somente ouvi-lo e entendê-lo, como também podemos fazer algo a mais, dando oportunidades ou oferecendo meios materiais para que a pessoa possa sair daquela situação difícil", afirma o lama. É uma ajuda prática, que pode envolver dinheiro, comida ou trabalho.

Na compaixão vermelha, nossa principal atitude é tentar despertar a força interior da pessoa que está passando por uma dificuldade. É dar estímulo, promover sua alegria ou até aproveitar a raiva dela para direcioná-la na construção de uma nova vida. "Às vezes não basta dar acolhimento e condições materiais, se a gente não estimula o despertar do eixo interno emocional do outro, com entusiasmo e um referencial positivo do que pode acontecer no futuro", diz o lama.

A compaixão verde é a do grito, da bronca, do basta. "Quando gritamos 'Não faça isso!', nós interrompemos uma ação negativa, para bem da pessoa. Isso também é compaixão", afirma o lama Samten. A psicóloga paulista Maria Cândida Amaral afirma que isso é muito comum entre as famílias. "A compaixão pode ser exercida com brabeza, com emoção. E isso não tem nada a ver com sentimentos melosos", diz. Uma mãe pode fazer isso com o coração apertado, mas sabe que tem de fazer e que, ao se omitir, cometerá uma falha na educação dos seus filhos.

A última forma de compaixão, segundo prega o budismo, é a branca. "Nela oferecemos nossa própria natureza essencial, que é luminosa, amorosa e compassiva. Porque ainda que eu acolha com ternura, ainda que propicie meios, ainda que procure despertar a coragem da pessoa e que impeça sua negatividade, se não oferecer amor, todas as outras formas de compaixão ficam quase sem sentido", conclui o lama.

Curar, aliviar, sentir

Bom, vimos que esse sentimento pode ser vivenciado por qualquer um e que, para ser experimentado de uma maneira mais continuada, exige equilíbrio interno e, talvez, uma preparação. O budismo, mais uma vez, oferece um método excelente para esse treino: a meditação tong-len. Nessa prática, você inspira todas as dores e sofrimentos do outro, que às vezes passa pela mesma dor que você, para expirar esperança, alívio, amor e alegria. Quando praticamos o tong-len, fazemos um trabalho intenso com o ego, pois temos uma resistência natural a inspirar o sofrimento alheio. Até chegar um momento em que isso não tem mais importância.

A gerente administrativa Maria de Lurdes Assunção Ferrari, por exemplo, perdeu o filho de 21 anos num acidente de automóvel e fez a prática para se recuperar da própria dor. "Meu sofrimento era tão imenso que minha única saída era me irmanar com quem passava por isso. Inspirava a dor de todas as mães do mundo que tinham perdido um filho e expirava aceitação, paz, alívio", conta. O sofrimento passa a fazer parte de um todo, não é mais apenas individual e tão pesado. Ao fazer a prática pelas mães que perderam seus filhos, Maria de Lourdes também a realizava por si mesma: a aceitação e a serenidade que desejava às outras mulheres aos poucos foi tomando conta de seu próprio coração.
Também podemos fazer o tong-len por nós mesmos. Aliás, essa é a melhor maneira de começar: inspirando todos os nossos sofrimentos e mágoas e expirando purificação, alívio e perdão. Simon Luna, um dos maiores instrutores da tradição Shambhala, ensinava que podemos aprender a curar a criança ferida que temos em nosso coração com a prática do tong-len, inspirando sua dor e expirando acolhimento, carinho, ternura num cálido abraço. Pois quem mais precisa de amor e compaixão, nos passos iniciais desse longo caminho, somos, afinal de contas, nós mesmos
Liane Alves

- de uma carta a uma criança com câncer...


domingo, 18 de maio de 2014

Ode ao Gato...

                                                                           


Bichos polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez por isso.
Nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece.
O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias do amor. Só as saudáveis.
Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu. Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado? Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?
Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula. Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou falso.
"Falso", porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.
O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio, é espelho. O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação. Nada pede a quem não o quer.
Exigente com quem ama, mas só depois de muito certificar-se. Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige.
Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente, é capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se comporta como um lorde inglês.
Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso. Relaciona-se com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se defende do afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento.
O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós). Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta. Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem não o sabe "ler" pensa que "ele não está ali". Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.
O gato vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba perceber.
Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos devolver as perguntas medrosas esperando que encontremos o caminho na sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações, infinitas, entre as coisas.
O gato é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação, quer afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato!
Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos em todos os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadores reservas não levariam tanto tempo (quase 15 minutos) se aquecendo para entrar em campo.
O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, a qual ama e preserva como a um templo.
Lição de saúde sexual e sensualidade. Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias. Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e território pessoal. Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular. Lição de salto. Lição de silêncio. Lição de descanso. Lição de introversão. Lição de contato com o mistério, com o escuro, com a sombra. Lição de religiosidade sem ícones.
Lição de alimentação e requinte. Lição de bom gosto e senso de oportunidade. Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa, educada, sem cobranças, sem veemências, sem exigências.
O gato é uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo mistério à disposição do homem.

Artur da Távola