domingo, 1 de junho de 2014

A tristeza e a fúria...

J.J. Camargo: a tristeza e a fúria Edu Oliveira /Arte ZH



Há tantas e tão imprevisíveis maneiras de expressar sentimentos que desconfio que os psiquiatras trabalham, na avaliação inicial, com modelos padronizados numa espécie de triagem emocional que servirá para definir em qual escaninho operacional aquele distúrbio será colocado.
Mais ou menos o que fazemos com as grandes síndromes de urgência no pronto atendimento.
Convivendo com familiares desesperados pela iminência da perda, é comum flagrarmos destemperos grotescos de pessoas tidas pelos seus como indivíduos pacatos. O turbilhão de conflitos que permeia essas relações, agudizadas pela mistura de medo, ansiedade, impotência e culpa, exige do médico grande maturidade e firmeza, para que se restabeleça a ordem mesmo que todas as setas apontem para o caos.
Quando a moça da recepção pediu ajuda porque um tipo agressivo ameaçava bater em todo mundo se a mãe não internasse logo, a fúria parecia descabida.
A velhinha, com um ar de alienação pacificadora, tinha como única queixa uma leve dor de cabeça recorrente nos últimos anos. Quando me dirigi ao bagunceiro e perguntei que tragédia se abatera sobre ele que lhe causara tanta tristeza, houve uma pausa, como se todos os gestos tivessem sido congelados. Ele, como que atingido em pleno voo, encolheu-se, sentou, e começou a chorar. "Deus não tinha o direito de levar minha filhinha". Ali, sim, havia uma dor de verdade.
Quando o encontrei, dois dias depois na lancheria do hospital, ele sentou comigo, pediu desculpas outra vez, e perguntou: "O Senhor é algum adivinho? Como é que sabia da minha tragédia?".Então, compartilhamos um café e lhe contei uma história que li há muitos anos num livro de contos de Jorge Bucay, um psiquiatra argentino: "Num reino encantado havia um lindo bosque e, dentro dele, um lago de águas transparentes onde se refletiam todas as tonalidades do verde.
 
Nesse lugar maravilhoso, se acercaram para banhar-se, fazendo-se mútua companhia, a tristeza e a fúria. As duas tiraram as roupas e, nuas, entraram no lago. A fúria, apressada como sempre está a fúria, urgida sem saber por que, banhou-se rapidamente e, mais rapidamente ainda, saiu da água. Acontece que a fúria é cega, ou pelo menos não distingue claramente a realidade. Por isso, apressada e nua, pôs ao sair o primeiro vestido que encontrou. E aconteceu que aquele vestido não era o dela, mas o da tristeza...
E assim, vestida de tristeza, a fúria se foi.
 
Indolente e serena, disposta como sempre a ficar onde está, a tristeza terminou o seu banho e, sem pressa, lenta e preguiçosamente, saiu da água. Na margem, deu-se conta de que a sua roupa já não estava ali. Mas, como todos sabemos, se há coisa que não agrada à tristeza, é ficar desnuda. Por isso, vestiu a ún
ica roupa que havia por ali: o vestido da fúria.
 
Conta-se que, desde então, muitas vezes deparamos com a fúria, intransigente, cega, cruel e agastada. Mas, se olharmos com atenção, veremos que essa fúria não passa de um disfarce e que, por trás do disfarce da fúria, na realidade, está escondida a tristeza".
Ficamos abraçados um tempo e, então, ele insistiu em pagar o café.

JJCamargo

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