domingo, 4 de janeiro de 2015

Cônica sobre um gato...

                         

Hoje escrevo de rastos. Morreu-me o gato. Mas foi muito mais do que um gato. Há quase 20 anos, o meu relacionamento com a minha mulher tinha apenas alguns meses. Um dia, na SIC, andava por lá uma menina com uma cesta com gatinhos recém-nascidos. Esta menina tinha sido apanhada pelo nojo injusto de uma leucemia. Era muito pequena, nunca saberemos se percebia bem o que o destino malvado lhe reservava. E daí, talvez soubesse, naquela sabedoria serena das crianças e dos animais, esse instinto com o qual temos tanto a aprender. Ela devia perceber, porque andou a recolher gatinhos no seu quintal, deixados por uma qualquer gata que tinha desaparecido. Recolheu-os a todos numa cesta, e nessa visita à SIC tentava encontrar quem ficasse com eles. Como se fosse o seu último gesto: não partir sem resgatar a vida dos bichos indefesos. Uma das pessoas que a menina abordou foi a minha mulher. E foi assim, sem hesitação, que o gato veio para nossa casa. Sim, foi há quase 20 anos, o que significa que o gato viveu todo este tempo, desafiando todas as estatísticas. O que significa, acima de tudo, que esteve connosco todo o tempo da nossa vida de casal. Todo. Foi um gato a sério. Altivo, desconfiado, senhor do seu nariz. Viu aparecer lá em casa um cão, depois outro, e cedo lhes demonstrou quem mandava na matilha. Pelo caminho, foi recebendo festas dos meus amigos, e foi arranhando os filhos dos meus amigos. Aqui há uns anos, tornou-se um gato obeso, enorme, quase uma atracção de feira. Ficou diabético, passou a comer ração especial, mais não sei quantos comprimidos. Manteve sempre a postura, soberbo. Miava se cheirava peixe no forno. Os meus amigos brincavam com o seu tamanho desmesurado. Fazia parte da nossa casa. Há uns meses largos, foi emagrecendo, emagrecendo. Tornou-se quase o gatinho que trouxemos um dia da SIC, resgatado pela menina que iria partir em breve. Definhou. Foi desistindo. Na manhã do dia em que morreu, peguei nele para o mudar de sítio (já não conseguia sozinho), e cabia todo na minha mão, um saquinho de pêlo quente, no qual se sentiam todos os ossos. No dia seguinte à sua morte, dei por mim a fazer os gestos do costume, fui ainda verificar se a sua tigela tinha água. Mas a tigela já lá não estava. Devo ter de habituar-me. Por enquanto, limito-me a pensar se fiz tudo: se lhe dei as festas todas, se o tapei nas noites frias, se brinquei com ele nas tardes de verão. O veterinário garante-me que sim, que devemos pensar que ele foi um gato feliz, e que é nisso que devemos concentrar-nos agora. O veterinário foi uma pessoa especial. É uma pessoa especial. Obrigado por tudo, dr. Pedro Fachada. Não tive qualquer problema de chorar em frente a ele. Conheço poucas pessoas tão sensíveis e delicadas. Chorei em frente a ele, e choro aqui em frente de todos os que me lêem. Não quero saber se sou piegas. Não tenho medo de parecer ridículo: o meu amor pelos animais será sempre maior do que isso. Morreu-me o gato, morreu uma parte importante da minha vida com a minha mulher. Vou ter de habituar-
-me. Não sei se me habituo.

Rodrigo Guedes de Carvalho 

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