sábado, 24 de maio de 2014

Embrulhe-me com jornal...

                                                                                 



Como ler jornal várias vezes. Não há nenhuma notícia de interesse, nota e fato que despertem atenção, mas ainda assim volta-se a pegar o jornal para passar o tempo. Conhece-se o conteúdo, espia-se as editorias de novo, repassa-se as chamadas e a atitude é repetida à exaustão. Do início ao fim, do fim ao início. Os cadernos, os anúncios, as colunas, os obituários, as notícia recebem democrática distração. O jornal revela uma companhia fiel, como um cão ou um copo com gelo. Será lido até que se torne inofensivo. No balcão do zelador, na mesa da manicure, na escrivaninha de um arquiteto, será sacado o exemplar amarfanhado para cobrir o intervalo e a breve folga. Durará uma semana em um único dia. De dobrado e manuseado, terá estrias de deserto. Como explicar essa teimosia? É como se houvesse códigos ocultos entre as letras, um suspiro de sentido, uma descoberta a fazer. A mensagem cifrada não é para ser conhecida, a procura é a chegada. O jornal é relido pela esperança de que alguma coisa mudará de um minuto a outro, de que uma notícia que nos diz respeito aparecerá de repente. Assim me sinto com os filhos. É o mesmo texto lido de forma diferente. Ler de forma diferente é reescrevê-lo, apesar de não ter mudado absolutamente em nada o arranjo das páginas e a ordem dos parágrafos. Os filhos não são os pais, os filhos são o que eles precisam. Não os elogio quando parecem comigo, porém quando se parecem com as suas próprias verdades. Aqui faço um apelo a quem lê sua vida com a insistência de um jornal. Aqui faço um apelo aos pais que se separaram e cuidam dos seus filhos em casas separadas. Não fale mal do ex ou da ex na frente da criança, não subestime a sensibilidade dela. Se não consegue resolver seus problemas, ao menos não os aumente. A criança não merece herdar o seu ódio, o seu desafeto, a sua raiva. A criança não foi casada com a mãe ou com o pai, não adianta transferir as broncas. Não há continuidade espontânea, é sempre induzida. A herança genética não é uma religião, com velas acesas diante de santos. E não falo de palavras, e sim das caretas, do esgar, do repuxo das sobrancelhas. O filho capta o desprezo ou a indiferença nos gestos. No telefonema seco e irritante. Nas piadas mórbidas. Até no silêncio e na omissão. Palavra é também o que não nasce da boca. Sua experiência represará o sangue dos filhos e pode reprimir possíveis e autênticas escolhas. E eles se verão divorciados, desquitados e viúvos antes de casar. Já houve uma separação, para quê duas? Não diga que o ex ou a ex não presta, porque não encontrou utilidade como queria. Não houve futuro ao casal, então que não se apague o passado. Os anjos conhecem o inferno por ouvir falar. Falar já é fazer o inferno. Depois não adianta procurar um psicólogo para o filho e argumentar que não o entende. Ele se vê dividido entre duas chantagens, entre duas promessas, entre duas vidas. É natural explodir, cobrar e se desesperar. A criança mal se aprendeu e precisa optar por aquilo que não viveu. Não tirou a carteira de identidade e é obrigado a definir sua assinatura. Trata-se de uma carga excessivamente nociva para sair com a urina. Duvido de todo amor que se transforma em vingança, da confiança reduzida à represália, do conselho que vira ameaça, da proteção que termina em dependência. É desumano transformar o filho em garoto de recados. É desumano fazer indiretas, confundir onde existe lealdade, invejar os segredos que não foram contados. Toda guerra é suja, ainda mais a psicológica, onde crianças são usadas como escudo humano para parcelar dívidas. Na ausência de amizade, serve a cordialidade e o respeito. Para ser pai ou mãe, é necessário ter sido filho e não ter esquecido. Como ler jornal várias vezes.


Fabrício Carpinejar  

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