Hoje não vou me alongar sobre o espantoso analfabetismo brasileiro que inclui universitários, o que para mim nem foi choque nem novidade: há anos sabemos disso. E, quanto mais baixamos o nível do ensino pensando agradar aos mais simples e incluir os mais despossuídos, em lugar de lhes prestar um favor, apenas lhes oferecemos coisas piores.
Poderíamos, em lugar disso, oferecer excelentes cursos técnicos, de onde sairiam para profissões extremamente necessárias ao país, e que eventualmente pagam melhor do que muitas profissões liberais.
Hoje quero esquecer educação, deseducação, abandono, desinteresse, incompetência, mediocridade: quero falar da morte dos nossos afetos, de mais um amigo perdido. Figura inesquecível, de quem não darei o nome, pois tantos mereceriam estar aqui citados.
Quem o conheceu sabe de quem falo. Quero nele homenagear os bons afetos que nos ajudam a viver, e a crescer, especialmente aqueles que foram originais, inimitáveis como este, e que nos fazem sentir quanto nos dedicamos a bobagens, sofremos por tolices, nos desperdiçamos em futilidades (não que futilidades não sejam necessárias, ou seríamos uma manada de bois obtusos ruminando o nada).
Mas devíamos lhes reservar um espaço um pouco menor, e quem sabe o choque da morte, da doença, do drama humano, em qualquer idade e lugar, nos fizesse rever alguns conceitos, elaborar alguns valores – ainda que por poucas horas ou semanas.
Quando morre alguém que a gente ama, seja amigo, amado, alguém da família, todo o resto diminui, fica encoberto por um nevoeiro, tudo para. O mundo é pura sombra, o planeta não gira, e se gira não interessa. Estamos petrificados no choque, na dor, na inconformidade, às vezes na autocompaixão.
Conheci um viúvo que diante da mulher morta gritava: “Como é que isso foi me acontecer?”. Ele tinha sofrido esse último tipo de traição: a amante Morte sempre vence. Tanto mais quanto mais não aceitarmos, com o tempo, que aqueles que morrem apenas se transformam; enveredam por outra dimensão; vão crescer e se aperfeiçoar mais; ou se escondem, fingem-se de mortos e nos espiam lá do seu enigma, e nos cuidam, conforme a crença de cada um.
Quando foi bom o amor, os mortos pedem que a gente não os perturbe, e que viva sem muito desgosto e sem mórbido luto. Pedem que abaixemos o ruído das nossas aflições, e que, porque os amamos, seja agora com um amor que não os algeme. Se a onda natural de culpa for excessiva e tiver algum real fundamento, vamos nos agarrar desesperadamente aos mortos – não para que nos ensinem a viver de novo, mas como bandeiras escuras de isolamento e rancor.
Quando estavam de bom humor, os deuses abriram as mãos e soltaram neste mundo os oceanos e as sereias, os campos onde corre o vento, as árvores com mil vozes, as manadas, as revoadas – e, para atrapalhar, as pessoas. Que passaram a correr meio desnorteadas atrás de coisas que nem sabem direito: a mulher mais sedutora, o homem mais poderoso, ou coisa nenhuma. Tudo menos parar e pensar. Enquanto isso a Morte revira seus grandes olhos de gato, termina de palitar os dentes e prepara o bote: nós nunca estamos preparados.
Nem eu que, como todos, perdi muitos afetos. Mas isso me ensinou a não acreditar demais na morte nem desistir da esperança, que rebrilha entre o cascalho bruto. A gente tem de aprender a enxergar, tem de crescer como, dizem as lendas, crescem ainda nos silenciosos túmulos os cabelos de quem se foi (mas hoje a gente é cremada, nem vermes nem longas cabeleiras).
A Morte, amiga indesejada, vai colhendo alguns dos que mais amamos, e os esconde nas suas largas mangas. Quando trabalhamos ou nos divertimos, ela passeia pelas praças, sobe nos telhados mais altos, e aponta aqui e ali seu dedo ossudo: este, este, esta, aquela. Às vezes vários num só golpe.
Ela é natural, dizem; é inevitável, sabemos. Mas a gente não entende, não aprende, não se conforma. Porque não se decifra esse enigma. Porque não somos bons alunos nessa dura escola.
Lya Luft
Lya Luft
Nenhum comentário:
Postar um comentário