segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A dor do outro...

Por mais que a modernidade tenha se esmerado em extinguir o formalismo das relações humanas,
e os redutos de resistência sejam muitas vezes tratados como retrógrados, não há como negar que, em algumas situações, a ausência de formalidade encolhe o acontecimento por banalização.
É intrínseco da natureza humana nos sentirmos desprestigiados quando o que consideramos importante é tratado como trivial. E não há modismo que torne aceitável o jeito desleixado de tratar os momentos marcantes das nossas vidas.
Além disso, existem situações que não se justificam se delas for retirada a formalidade.
É, e sempre será assim, na declaração de amor, no pedido em casamento, na cerimônia de formatura, no anúncio de uma demissão ou na comunicação da morte.
Se ficamos desconfortáveis quando uma notícia boa é desmerecida, é muito mais inesquecível a mágoa se houver desconsideração no sofrimento.
Por isso, o cerimonial da notícia ruim é tão relevante e tão revelador do quanto estamos comprometidos com a dor do outro.
Aquela futura mãe curtiu intensamente uma primeira gestação em que tudo fora planejado em detalhes e, num misto de incompreensão e perplexidade, foi surpreendida com a notícia de que o parto devia ser antecipado porque tinha sido detectado um defeito genético no feto.
A cesárea foi realizada na sua cidade, e o Eduardo, levado pelo pai para uma unidade de alta complexidade em neonatologia, na Capital. Foi comovente o seu relato de mãe que não teve tempo de tocar o bebê recém-nascido. E absurda a descrição da insensibilidade da médica que comunicou, horas depois, que o defeito, gravíssimo, era praticamente incompatível com a vida. E diante do choro previsível, uma pérola de consolo: “E trate de ser forte porque você não é a primeira e não será a última mãe a passar por isso”.
A via crucis estava apenas começando e, entre várias tentativas de correção dos defeitos múltiplos, que incluíram uma demorada cirurgia cardíaca, e a morte, decorreram quase 11 meses. Nesse tempo marcado por insônia, impotência, choro e desespero, o único consolo fora da família foi a companhia da Ju, uma atendente, mulata do sorriso meigo, da palavra consoladora, da cumplicidade generosa e do silêncio solidário.
Esgotados os recursos, batalha finda, exaurida de dor e desesperança, com nada mais para oferecer ou modificar, a Ju ainda foi capaz da última palavra: “Mãezinha, agora é a tua vez de entrar lá e dizer ao Dudu que tu sabes que ele fez tudo o que podia. E não esqueças de agradecer por ele ter sido esse anjo que Deus colocou na tua vida para que sejas uma mãe ainda melhor para os muitos filhos que terás no futuro!”.
Para comprovar que afeto e desconsideração no sofrimento deixam marcas indeléveis e definitivas, já se passaram 12 anos, mas a lembrança doce, disponível e amorosa da Ju continua lá, irretocável na preservação das palavras e dos gestos de carinho espontâneo.

JJCamargo

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