domingo, 3 de fevereiro de 2013

II Silenzio...



Em fins de novembro de 1963 meu irmão caçula que tinha menos de dois anos internou no Hospital São Vicente de Paulo em Cruz Alta com quadro de desidratação grave. Iria morrer por certo e o único médico que minha mãe não desejava era o que o atendeu, Dr Jacob Blochtein pediatra e anestesista. Pela primeira vez vislumbrei a possibilidade de morte, eu que tinha seis anos e também, pela primeira vez, vi puncionarem uma veia jugular para a descida do soro. Chorei ao pé da cama, clamando para o quase impossível. Tocava em todas as rádios a música Il silenzio de Nino Rosso porque John Kennedy fora assassinado em Dallas. Aquilo tudo me parecia o fim dos tempos.

Na mesma época, nos Estados Unidos, o Dr William Haddon Jr estudava a fundo as razões e o enfrentamento correto ao trauma. Dr. Haddon não acreditava na vala comum chamada “fatalidade”. Ele acreditava que os sinistros poderiam ter nova concepção de atendimento, principalmente em relação à prevenção dos mesmos. Então, ele ofereceu à sociedade médica que os “acidentes” tinham razões pré-evento, razões no evento e no pós-evento e que a cada uma dessas situações haveria de ter abordagem diferente, mas interligada às demais. Então, o doutor propôs que se deveriam melhorar as estradas, dotar os veículos de maior segurança, cursos de direção defensiva, descanso periódico, não ingesta de bebida de álcool, cintos de segurança, controle de velocidade, uso de capacetes aos ciclistas e motociclistas, resgate eficiente, equipamentos e hospitais adequados. Verificou-se mais tarde que essas medidas tinham o poder de diminuir em até 35% as possibilidades de óbitos. Esses estudos foram estendidos a outras espécies de emergências.

Com a “fatalidade”, na querida e acolhedora Santa Maria, buscaremos alguns culpados e os processaremos. Alguns até já estão presos, afinal a sociedade precisa identificar os culpados. Mas, são muitos os culpados e nem mesmo a prisão de alguns ou muitos será capaz de abrandar a dor e o luto a que todos estamos submetidos. Dr Haddon que faleceu aos 58 anos em 1985 entendia que o sucesso da empreitada contra as mortes por trauma dependia da observação de quatro Ex: educação a todos, como forma de prevenção; execução e observação rigorosa das leis de proteção universal; engenharia aplicada de forma defensiva a qualquer ambiente e economia como forma de aplicação maciça de recursos a minimizar o número de óbitos. Ao que eu saiba, dr Haddon nunca brincou carnaval. Aqui no Brasil nós brincamos. Investimos grana pesada no divertimento que é “a cara do brasileiro”. Pulamos travestidos daquilo que gostaríamos de ser ou somos de verdade: palhaços, transexuais, políticos, super-heróis. Dr Haddon entendia que a preservação da vida vinha em primeiro lugar e depois, seguros, viria a diversão. Se tivéssemos acompanhado o raciocínio do médico americano em prevenir eventos de trauma não estaríamos vestidos de preto por luto histórico que envergonha a sociedade. Aqui no Brasil somos surpreendidos a cada tragédia, mas logo vem o carnaval e caímos no samba. E igual a 1963 o tema musical das autoridades para essa temporada deverá ser Il silenzio, de Nino Rosso.

PS. Dr Jacob Blochtein, natural de quatro irmãos e por quem minha mãe tinha uma antipatia fortuita, foi um grande médico não somente em Cruz Alta, como também em Passo Fundo, tendo sido um dos professores de nossa faculdade. Atualmente mora em Curitiba e é escritor. Meu irmão está com cinqüenta anos e deve sua vida a este extraordinário colega.


(Jorge Anunciação)

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