Quando aqueles que estão
morrendo são nossos entes mais queridos, a dor da separação é intensa.
Certa vez, escutei Sogyal Rinpoche dizer: Só aceitamos nos desapegar de
alguém, quando sentimos ter recebido tudo que gostaríamos por meio desta pessoa.
Ou seja, só nos desapegamos daquilo que estamos plenamente satisfeitos.
É mais fácil nos separarmos daqueles que sentimos amar e por quem nos
sentimos amados, pois, desta forma, preenchidos de amor em nosso interior, não
vivenciamos a separação como uma perda de nossa capacidade de amar. Desapego,
neste sentido, significa estarmos satisfeitos, nutridos de amor
espiritual.
No entanto, em geral, temos dificuldade de entrar em contato
com esta forma de satisfação, porque nos concentramos mais no que ainda
gostaríamos de receber, do que no reconhecimento do prazer já recebido. Por
isso, apesar da satisfação não surgir através da análise racional de um fato,
mas, sim, da experiência genuína de um sentimento, muitas vezes temos que
recorrer à análise mental para despertarmos a força curativa do sentimento em
nossa psique.
Quando somos tocados por essa forma elevada de amor,
desejamos que a pessoa amada seja realmente feliz: com ou sem a nossa presença.
No entanto, em geral, nosso amor é mais emocional que espiritual: amamos
na carência, isto é, nos alimentamos do sentimento de que amar é sentir
necessidade do outro. É comum pensarmos que o outro irá reconhecer que nos ama
somente se nos afastarmos e o fizermos sentir nossa falta, ou seja que só
seremos valorizados na ausência. Ao contrário do que se pensa, porém: amar é não
sentir falta!
Quanto mais soubermos reconhecer nossa capacidade de amar,
menos dependentes estaremos da presença física da pessoa amada. A prova que esta
premissa é verdadeira está no fato de que continuamos a amar alguém mesmo após
sua morte.
A dinâmica do amor continua em nosso interior: continuamos a
nos dedicar à pessoa amada mesmo depois que ela já se foi. Rezamos por ela, e
muitas vezes passamos a nos dedicar a finalizar seus projetos e realizar seus
desejos.
Enquanto escrevi parte deste texto, acompanhei os quatro
últimos dias de vida de Adriana, amiga de muitos amigos, uma psicanalista
prática e serena ao mesmo tempo. A sua aceitação diante da terminalidade foi
exemplar. Deixou-nos muitas vezes surpresos e ao mesmo tempo confiantes de que
ela, apesar da forte dor física, estava com a mente preparada para falecer. O
amor de todos por Adriana era evidente: cada um, a seu modo, demonstrou estar
disposto a fazer o que fosse necessário para contribuir pra seu
bem-estar.
Nos dias que sucederam sua morte, Márcia, sua grande amiga
com quem compartilhava o apartamento, me disse: A melhor experiência que tive
depois da morte dela, foi quando arrumei o seu quarto, retirando todo o material
do home care, fazendo a cama, colocando incenso, tocando os mantras no
som.... ali eu tive pela primeira vez uma sensação de paz, por estar continuando
a cuidar da Adriana. Cuidar da energia do quarto dela me deu o conforto
necessário para poder acolher a sua morte.
Assim como explica Robert
Sardello em seu livro Liberte sua Alma do Medo (Ed. Fissus): No amor
espiritual, o bem da outra pessoa vive dentro de cada pensamento que me vem,
quer o pensamento tenha ou não a ver com ela. O termo espiritual para essa
qualidade é intento, que carrega um significado muito mais sutil do que
quando dizemos que temos a intenção de fazer algo. Intento carrega o sentido de
que alguma coisa mantida no pensamento se tornou tão real como se estivesse
literalmente presente – não presente à minha frente, mas em todos os lugares
dentro de mim. No amor espiritual, aquilo que se torna tão absolutamente real é
a qualidade espiritual da outra pessoa, sentida no intento de ser orientada
unicamente para o bem da outra pessoa. Na vida diária, o aperfeiçoamento do amor
espiritual se concentra nos pensamentos que temos em relação à outra pessoa.
Esses pensamentos não são iguais àqueles que surgem da saudade de alguém, da
lembrança de algo que fizeram juntos no passado ou de pensar sobre o que a
pessoa possa estar fazendo no momento. No amor espiritual, não necessariamente
pensamos na outra pessoa, ao contrário, a outra pessoa, como espírito, tornou-se
completamente entrelaçada à minha existência de modo que, mesmo sem perceber,
ela está comigo a cada momento, de uma maneira que acentua a minha própria
liberdade individual em vez de impedi-la.
Texto extraído do livro Mania de
Sofrer de Bel Cesar
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