Contam os anjos que
às vezes me inspiram que um pouquinho antes de materializar o seu plano de
criação da vida humana e se derramar no coração de todas as coisas da Terra, o
Senhor Deus Todo Poderoso resolveu repassá-lo, ponto a ponto, pela última vez.
E, ao terminar o trabalho, sentiu, bastante surpreso, que ainda parecia estar
faltando um detalhe sem nome nem rosto em sua grandiosa obra. Algo que não havia
sido contemplado por nenhum dos incontáveis milagres com os quais dotaria o
homem e o ambiente que preparava para acolhê-lo e supri-lo em sua jornada
evolutiva.
Como um poeta que ao
findar um poema é tocado pela vibração de uma palavra que não foi dita sem
conseguir visualizar-lhe as feições, o Senhor Deus intuiu a ausência de uma
dádiva no buquê de luzes que ofertaria ao homem para perfumar sua caminhada
heróica, que trilharia até tornar-se um mestre das coisas que não passam e
reunir-se a Ele numa só consciência criadora.
O Senhor Deus não sabia
que doçura era aquela que reclamava sua amorosa atenção, mas pressentia que se
tratava de algo imprescindível. De alguma graça que deixaria uma lacuna em
branco em cada história humana, caso não existisse. De mais um dos presentes que
bordaria em cada vida com os fios da delicadeza que utilizaria em tudo o que
planejava ser forte. Mas o que poderia ser, Ele se perguntava, além das outras
tantas ternuras que já havia previsto bordar?
E o Senhor Deus pensou,
pensou, pensou. Relembrou cada detalhe, cada etapa, cada riqueza, pacientemente,
com todo o zelo de seu coração criador. Reuniu-se com os mestres que o
assessoravam no Plano. Trocou idéias. Ouviu, atento, as sugestões e observações
que surgiram. Mas nada do que pensava e ouvia atendia à sua expectativa e se
aproximava da resposta que buscava desde que aquela intuição lhe visitara. Que
traço, afinal, poderia ainda criar para compor o conjunto das bençãos que
desenharia na Terra? Que beleza era aquela que murmurava em seu ouvido sem
revelar-lhe o rosto?
Contam que, como era
costumeiro, numa certa manhã o Senhor Deus Todo Poderoso estava distraído no
jardim de sua casa, cuidando amorosamente de suas plantas, quando um anjo, muito
belo, muito jovem, banhado de luz azul, aproximou-se Dele para transmitir-lhe
uma mensagem de um de seus arcanjos, Miguel, o príncipe celeste que comandava
seu exército de luz. E que foi no exato instante em que olhou para aquele anjo
que o Senhor Deus descobriu o que ainda faltava em seu plano: anjos que o homem
pudesse ver, exatamente como Ele podia ver aquele.
O plano do Senhor Deus
previa que seria escolhido para cada pessoa, a partir do momento alquímico de
sua concepção, um anjo que iria acompanhá-la em toda a sua trajetória humana,
até que devolvesse à Terra a roupa de carne que lhe havia sido emprestada. E,
embora se tratasse de um leal companheiro, que iria fortalecê-la, protegê-la e
inspirar-lhe, e lhe fosse possível falar com ele e ouvi-lo, em seu coração, o
ser humano não poderia vê-lo, a não ser que em algum instante experimentasse um
amor tão intenso que conseguisse penetrar na freqüência luminosa onde os anjos
moram.
Para o homem, pensava o
Senhor Deus, por mais grandiosa que fosse, aquela dádiva não bastaria. Ele sabia
que o ser humano teria dificuldade para lidar com as coisas que chamaria de
invisíveis. Que se atrapalharia com tudo o que não pudesse ser tocado com algum
dos cinco sentidos que, equivocadamente, acreditaria serem os únicos que
possuía.
O homem precisaria também
de anjos que fossem visíveis. Feitos da mesma matéria que ele. Com os quais
pudesse brincar com os brinquedos humanos. Crescer junto, aprendendo, ensinando,
trocando. Que os olhassem nos olhos e o encorajassem ao próximo passo às vezes
sem uma única palavra sequer. Com os quais pudesse compartilhar os sabores, os
sons, as visões, as falas e as texturas das coisas da Terra e sonhar com as
coisas do céu. Que estivessem ao seu lado nos dias de sol e também lhe
estendessem a mão para atravessar com ele o tempo em que as noites se fariam tão
escuras que ele começaria a duvidar do amanhecer.
Sim, continuava a pensar
o Senhor Deus, o homem precisaria de anjos visíveis que tivessem em sua vida a
mesma bela tarefa do anjo que não podia ver. Anjos que permanecessem em seu
caminho quando tudo parecesse ter ido embora. Que acreditassem nele até quando
ele próprio se esquecesse quem era. Que quando o cansaço lhe visitasse e os
apelos da sombra o convidassem a desistir, desembainhassem a própria espada para
lembrar-lhe de que era também um guerreiro. Que emanassem para ele um bem-querer
tão puro que fosse capaz de perfumar até o que ainda lhe doesse. Com os quais
pudesse rir e chorar, e, sobretudo, ter a liberdade de ser.
O homem precisaria, sim,
de anjos visíveis com sangue nas veias. Que tivessem dor de barriga, mau humor,
contas pra pagar, unha encravada, medo, dente de siso para extrair, angústia,
raiva, baixo astral, e toda uma séria de chatices humanas que os anjos
invisíveis respeitam, mas não experimentam. Com os quais pudesse jogar conversa
fora. Torcer por um time. Cantar desafinado. Caminhar na praia. Trocar um
abraço. Empanturrar-se de risada e bobó de camarão num domingo grande. Que
espelhassem para ele sua porção humana e sua porção divina e lhes fizessem
parceria no contínuo exercício de integrá-las durante a viagem. Que pudessem
servir de canais para os toques, os puxões de orelha e os carinhos do seu
próprio anjo guardião, que, sem fazer ruído algum, trabalharia em sintonia com
eles o tempo todo.
E depois de dividir com
aquele anjo inspirador as feições de sua descoberta, contam que o Senhor Deus
Todo Poderoso lhe perguntou o seu nome, pois seria com ele que, em gratidão,
chamaria o anjo visível que cada pessoa encontraria na Terra.
E o anjo que inspirou o
Senhor Deus, maravilhado com sua bondade, revelou-lhe o seu
nome:
-
Amigo.
(Ana Jácomo)
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