Desta vez, me pegou. Já vi coisa feia nessa profissão. Já fui repórter de
polícia, já fui repórter de todas as editorias, testemunhei acidentes com
mutilações graves e tumultos sangrentos, violências e exumações, revolta e dor.
Vi a miséria humana. Mas, agora, essa tragédia de Santa Maria me abalou. Não por
causa das cenas horrendas dos corpos no chão do ginásio, naquele momento em que
caminhei pelas sombras do vale da morte. Não. Isso foi chocante, claro que sim,
mas não foi o que me ficou no peito. O que me matou por dentro é que ali todos
eram filhos.
Filhos.
Uma pessoa, quando ganha um filho, deixa um
pouco de ser, ela mesma, filha. Sua condição muda. Agora ela não é mais apenas
receptora, é também doadora de amor.
A realização do ser humano é
tornar-se doador de amor, mais do que receptor. Claro, essa realização não se dá
apenas com a paternidade e a maternidade. Padrinhos e madrinhas, tios e tias e
até amores românticos podem suprir essa necessidade de amar.
Mas o objeto
de amor, o filho, enquanto ele vive só na condição de filho, é como se ele
estivesse no começo, como se estivesse na fase de estreias da existência. Há
muito ainda pela frente e, por ele não saber o que há pela frente, há quem o
vele e guarde - são os seus pais.
Um filho que já teve filho lega a seus
próprios pais outro ser para guardar e velar: o neto. Quer dizer: o amor que os
pais tinham por aquele filho, de certa forma, é um amor já realizado, como o de
amantes que se casaram. O amor continua, mas, por ser realizado, é um amor
aplacado da gana e da fúria, é um amor sem ansiedade, um amor de primavera, não
de verão.
Já um filho que ainda não teve filho é objeto de um amor
pulsante, um amor aflito, que acorda de madrugada para contar a ausência do ser
amado no relógio.
Os jovens que estavam deitados sem vida no ginásio de
Santa Maria encontravam-se nessa condição. Eles eram filhos. Raríssimos deviam
ser pais. Talvez nenhum o fosse. Não por acaso, o celular de um deles tocava sem
parar, 10, 20, 30 vezes. Os voluntários olhavam para o celular, depositado sobre
o peito do jovem morto e liam no painel quem chamava: "Mãe".
Foi isso que
me pegou: pensar nas mães e nos pais daqueles meninos e meninas. Porque todos
acham que os filhos são dependentes dos cuidados dos pais, quando é o contrário:
os pais é que são dependentes do bem-estar dos filhos. Pois, afinal, o amor que
se dá é muito mais valioso do que o amor que se recebe. Pois, afinal, amar acaba
sendo mais importante do que ser amado
(David Coimbra)
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