domingo, 9 de junho de 2013

Como julgar um caráter...



Agora vou revelar algo que vai fazer com que eu caia no seu conceito. É o seguinte:
Gosto de Nuvem de Lágrimas.
Refiro-me à música de Chitãozinho & Xororó.
Ah, jeito triste de ter você
Longe dos olhos e dentro
do meu coração
Me ensina a te esquecer
Ou venha logo e me tire
desta solidão!
Gosto. Sei a letra todinha. Nunca contei isso antes porque desde a adolescência compreendi a verdade terrível: as pessoas julgam os outros pelo gosto musical. E talvez até as pessoas estejam certas. Dois dos maiores filósofos da História, Schopenhauer e Nietzsche, diziam que a música é a mais elevada de todas as artes e que é a mais nobre forma de expressão do ser humano. Claro, quando diziam isso pensavam em Mozart, Beethoven, Bach e, no caso especial de Nietzsche, Richard Wagner e Brahms, de quem, aliás, Wagner tinha ciúme. Não sei o que Schopenhauer e Nietzsche pensariam de Chitãozinho & Xororó e de um cara que gosta de Nuvem de Lágrimas. Isso me preocupa.
Em minha defesa, diria para Nietzsche e Schopenhauer que aprecio Mozart, Beethoven, Brahms e Bach, embora nem tanto Wagner (perdão, Nietz), e que estou desenvolvendo um método de avaliar o caráter do próximo pelo toque do seu celular, o que não deixa de ser um critério musical. Mesmo assim, sei que você deve estar decepcionado comigo por causa da Nuvem de Lágrimas. Paciência. Tinha que fazer essa confissão um dia. Fiz. Pronto. Saí do armário.
Que alívio.
Conto isso, pejado, por causa da Legião Urbana. Nos últimos meses, foram lançados dois filmes com temática da Legião Urbana, Somos Tão Jovens e Faroeste Caboclo. Bem. Fui convidado para assistir a eles várias vezes, a todo momento alguém me pergunta o que achei dos filmes e volta e meia colegas da área de Cultura pedem-me depoimentos a respeito. Por que isso? Tenho cara de quem gosta de Legião Urbana? Acontece que não gosto. Até reconheço a qualidade das letras, mas me irrita aquela gritaria de Jerry Adriani do Renato Russo e, o pior dos defeitos, eles parecem afetados. Uma gravidade falsa, entende? Os dramas de um adolescente mal resolvido e bibibi. Por favor! Prefiro a brejeirice do Leoni cantando que calcula tudo para impressionar a amada, a luz do final da tarde batendo em seu rosto, a ginga manemolente, o olhar de viés, mas nada funciona. “As coisas são mais fáceis na televisão”, reclama ele, e emenda: “Ainda encontro a fórmula do amor!”.
Sim, prefiro quem não se leva tão a sério. Ou quem se entrega genuinamente ao ridículo do amor, e Fernando Pessoa já disse que todas as cartas de amor são ridículas, logo, as canções de amor também haverão de ser. Chitãozinho e Xororó e seus cabelos com mullet são ridículos, quem gosta de Nuvem de Lágrimas, também, certo, mas pelo menos somos autênticos.
Serei um sertanejo?
Disse que gosto de Nuvem de Lágrimas e de imediato me preocupei. Será que isso significa que sou admirador de Chitãozinho & Xororó e música sertaneja? Fazendo agora um exame de consciência, reconheço que gosto daquela As Luzes da Cidade Acesa, ainda que me inquiete com o que parece erro de concordância.
São apenas duas músicas... Sou um sertanejo? Não, não quero pensar em mim mesmo como um sertanejo. Vai abalar minha autoestima.
É diferente, por exemplo, do Roberto Carlos. O Roberto Carlos tem 50 anos de carreira. A cada dezembro, lançou um disco. São mais de 600 músicas. Destas, só umas 50 realmente boas. Em outras palavras: mais de 90% da produção do Roberto Carlos é ruim.
Dito assim, parece que o Roberto Carlos é péssimo, já que nove entre 10 de suas composições não são boas. Mas ele não é péssimo; ele é ótimo. Ele é o Rei. Por quê? Porque 50 músicas boas é muita música boa para uma única pessoa. Logo, ele merece a coroa e, sim, posso dizer que gosto de Roberto Carlos.
Já os Beatles, quantas músicas escreveram? Contei 204, desde I Saw her Standing There, feita para uma namoradinha de Paul que, segundo ele, “tinha só 17 anos e nunca havia vencido um concurso de beleza”, até a imortal The Long and Winding Road, quando Paul e John já brigavam e o sonho estava prestes a acabar. Menos de uma década de carreira, portanto. Pois destas 204, quantas são ruins? Suponho que umas quatro, embora não as conheça. Portanto, eu realmente gosto dos Beatles. Isso é garantido. Ufa.
E o Raul Seixas? Juro que gosto do Raulzito, mas admito que ele só tem umas 12 músicas boas. Quanto ao Paulinho da Viola, 50% das músicas dele são ótimas e os outros 50% nem tanto, mas sou um Paulinhoviolista convicto. Ou será que não sou, por causa daqueles 50% nem tanto?
Maldição. Que crise de identidade.
                                                                  (David Coimbra)


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