Se não aceitarmos que já
não somos o que éramos, nosso contato com o mundo aqui e agora fica prejudicado
A criança passa por dramáticas transformações
(andar, falar, conhecer o mundo etc.), mas não tem consciência delas porque lhe
falta linguagem para descrevê-las.
Depois da
adolescência as mudanças continuam, mas com dramaticidade
menor.
Tão
marcante em transformações quanto a infância é o envelhecimento. Nessa fase da
vida temos consciência de tudo o que ocorre: perdas físicas e
mentais.
Comecemos
falando da reação aos imprevistos. Por que velho tropeça e cai tanto? Porque a
reação ao susto e o reflexo para evitar o perigo são mais
lentos.
Falemos
agora da memória, essa capacidade madrasta cuja falta castiga o idoso. Demoramos
para lembrar seja lá o que for e a conversa fica entrecortada de silêncios,
quase soluços.
O conteúdo
que em primeiro lugar mergulha nas sombras do esquecimento são os nomes
próprios; mais uns anos e substantivos comuns também se
embaralham.
O curioso
é que os adjetivos não somem. Aparecendo o nome, sua qualidade ou quantidade vem
junto, dos fundos da memória. O nome está em algum lugar, algum tempo, de algum
jeito. Se o substantivo emerge, traz consigo as
associações.
Os verbos
não somem, mas as ações deixam de ser desempenhadas. Se o verbo desaparecer, a
incomunicabilidade irá se instaurar.
Envelhecer
é perder: seja clareza, seja acuidade auditiva ou visual, velocidade de resposta
física ou de linguagem, memória.
Aí vem
aquela história: velho esquece o agora e lembra o mais antigo. Não há nenhum
mistério nisso. É que o antigo já se transformou em imagem e a imagem reaviva as
sensações. Quase nada é inconsciente, pois envelhecer é viver as mudanças
diárias.
Sentimos a
presença das mudanças. Se causam amargura, é pela não aceitação. E, se não
aceitarmos que já não somos o que éramos, o nosso contato com o mundo aqui e
agora fica prejudicado.
Assim como
é natural o ser humano se transformar ininterruptamente, em boa velocidade, do
nascimento à puberdade, é natural envelhecer, com lentas perdas no início e mais
rápidas depois.
Aceitando
que viver é assim, permanente transformação, podemos sorrir diante de perdas e
transmitir (até com humor) a quem nos rodeia que estamos presentes, acompanhando
o processo.
Nada de
dizer que a terceira idade é maravilhosa. Nada disso. Perder não é bom. Mas
alguns conseguem ir perdendo sem muita amargura, porque acompanham as
transformações dos que ainda estão ganhando.
É a
alegria do avô diante do neto. Há na atitude de acompanhar o que já tivemos no
passado doses de aceitação e generosidade. Podemos ajudar. Nossa sabedoria
funciona como conforto para quem está só começando.
O olhar
bondoso do idoso diante do tatibitate do nenê é sabedoria. O velho vislumbra o
caminho que o bebê irá seguir. Não é um reviver nem um renascer: é uma memória.
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* ANNA
VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) e "Educação ou o
quê?" (ed. Summus)
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