A relação, responsável, que estabelecemos com um animal de estimação pode ajudar a revelar o que temos de melhor.
- É aquela ali, ó. Sei que gosta de bichos, parece ter coração mole e dá para ver que é uma pessoa de atitude.
Foi assim que o funcionário do estacionamento falou com seu colega, referindo-se à Lu, minha esposa, que eventualmente deixava ali o carro para lavar. É que eles tinham encontrado em um canto do estacionamento um gatinho magro e assustado, evidentemente perdido ou abandonado, e não sabiam o que fazer com ele. A Lu era a solução, afinal, parecia ter "coração mole e atitude", a combinação perfeita para resolver o problema.
Dito e feito. O ar de desamparo do bichano foi o gatilho que acionou o tal "coração mole" da amante de bichinhos e desencadeou a ação correspondente, providenciada pela "atitude" da executiva bem-sucedida.
Quando ela o pegou no colo, o destino falou bingo!, e, do estacionamento, o sortudo gatinho foi direto para o pet shop, onde a veterinária Beth, que às vezes, brincando, chamamos de pediatra, pois cuida de nossas cachorrinhas desde que eram filhotinhos travessos, o examinou e medicou. "Ele só está faminto e estressado", explicou ela. Mais tarde ela iria diagnosticar outro problema...
Liberado pela veterinária, Bento (esse é seu nome) foi adotado, com direito a ração, cama, poste arranhador, caixa de areia e, o mais importante, muito amor. Além disso, ele ganhou a companhia da shih tzu preta e da maltês branca, nossas cachorras.
Dizem que as pessoas são divididas entre as que gostam de cachorros e as que gostam de gatos. As que gostam de cachorros seriam mais carentes, por isso adotam bichos que dão mais atenção, paparicam, fazem festa quando chegamos. Quem gosta de gatos é mais resolvido, precisa de menos validação afetiva. Se é assim, então sou um carente, pois sempre preferi cachorros. Na verdade, o que sempre me encantou foi a imensa capacidade de comunicação e interação que os cães têm conosco. Lembro de meus cachorros da infância, meus inseparáveis companheiros de brincadeira e aventuras. Sem eles, minha vida teria tido menos graça.
Só conheci de verdade os gatos bem mais tarde, quando minha filha Débora foi estudar fora e deixou sob nossa guarda provisória a Malha, uma felina que arrebatou meu coração. Travessa, inteligente, elástica, perfeita como máquina fisiológica, a Malha conquistou a Preta, com quem brincava de correr, e a todos os humanos, cujos olhos fitava profundamente. Só que a Débora voltou e levou a gata embora. Saudades.
O Bento veio para ocupar o espaço que estava vago, e foi muito bem-vindo. Só que a Preta, agora mais velha e calma, não se transformou na companheira de brincadeiras que o Bento, cuja idade não conhecemos, mas que é bem jovem, queria. "Simples" - disse a executiva da casa. "Vamos arrumar mais um gato!". Claro, mais um gato - nada mais lógico... Afinal, temos tanto espaço, não é mesmo?
Mal tive tempo de absorver o impacto da proposta quando já aparecia mais um filhote. "Este é da raça ragdoll, que significa boneca de trapo, em inglês. Tem esse nome porque fica todo relaxado quando é segurado no colo" - explicou Lu. "Vai se chamar Francisco" - informou.
E eis que o Francisco, além de ser dono de uma beleza impressionante, encantou a todos com sua meiguice. E formou com o Bento uma dupla inseparável. A simpatia de ambos trouxe ainda mais alegria para nossa casa.
Nós e os animais
A relação dos humanos com os animais é longa, e poderia ser dividida em três fases. Na primeira, os homens conferiam a certos animais qualidades divinas e os cultuavam como representações de deuses. Para os antigos egípcios, por exemplo, Rá, a principal divindade, era o deus-sol, e Bastet, que representava a fertilidade e o amor, tinha a forma de um gato.
A segunda fase, que pode ser chamada de econômico-utilitarista, é marcada pela percepção da utilidade de certos animais como fonte de alimento, abrigo, proteção, transporte e, como consequência, riqueza. O Brasil é, por exemplo, o maior exportador mundial de carne bovina e de aves, e precisa disso para equilibrar a balança de pagamentos.
Ainda como parte dessa fase, encontramos o uso de animais para fins científicos. Esse é, provavelmente, o ponto mais polêmico. Teríamos, em nome da ciência, o direito de submeter animais a experiências com potencial de fazê-los sofrer? Teríamos, por outro lado, a opção de não fazê-lo, sabendo que isso pode salvar vidas humanas? Os recentes acontecimentos confirmam a importância dessa questão ética. A discussão está em aberto.
Mas é sobre a terceira fase que escrevo. Essa poderia ser chamada de "fase afetiva", considerando a proximidade emocional entre os homens e os animais, incluindo as relações muito próximas com os chamados bichos de estimação, ou, simplesmente, pets. Em inglês, a palavra pet tem dois significados. Como substantivo, significa bichinho de estimação. Como verbo, to pet quer dizer acariciar.
Adoro acariciar meus bichos e receber abanos de rabos. Mas gostaria de questionar o verbo "servir". Será que a melhor maneira de entender essa relação é conferir uma serventia para ele? Não seria essa uma forma de transformá-lo em um objeto de uso e, assim, diminuir sua essência?
De fato, o homem, em sua arrogância de "ser superior", dividiu os outros seres vivos entre os que "servem" e os que "não servem". Mas, para que serve uma iguana, por exemplo? Ora, para viver sua vida, para integrar um ciclo da natureza. Ela não tem a obrigação de nos servir.
Em uma visão ampliada, a serventia de um ser vivo é viver e conviver. Manter-se vivo e contribuir com a vida de outros, seja em quantidade ou em qualidade. Então, quem adota um cachorro, um gato ou outro bichinho qualquer não está comprando um brinquedo - está iniciando uma relação de reciprocidade. Trata-se de um mutualismo. O servir tem duas mãos.
Humanizar
Eu tenho uma visão pessoal sobre esses personagens peludos: eles são seres não humanos que, curiosamente, humanizam os ambientes. Talvez porque sua simplicidade, espontaneidade e amorosidade liberam, nos humanos, o que eles têm de melhor. As relações entre as pessoas, cheias de expectativas, cobranças e julgamentos, muitas vezes nos embrutecem e nos fazem representar papéis que não queríamos. Diante de um bichinho, somos o que somos, sem máscaras. Isso é o que os bichos fazem de melhor por nós. Nos deixam melhores.
Mas não podemos deixar de observar a reciprocidade. Afinal, o que eles esperam de nós? Basta dar-lhes comida, abrigo e atenção? Acho que não. Acho que quem adota um bicho deve considerar que ele tem o direito de ser feliz. Só que isso dá algum trabalho, preocupação, despesa. Gente sem essa disposição não deveria adotar um.
Sobre o Bento, temos uma desconfiança: a de que ele foi abandonado porque estava dando muito trabalho. Nossa veterinária descobriu que ele havia sido castrado, o que mostra que já tivera um dono. Só que a cirurgia havia sido mal feita, e um fio cirúrgico ficara aderido ao intestino e saía pelo ânus cada vez que o coitadinho fazia cocô. Ele então saía pela casa deixando cair pelotinhas que ficavam presas ao tal fio.
Como, de manhã, a casa amanhecia cheia de marcas indesejáveis, sobre as quais era fácil pisar e fazer ainda mais sujeira, é bem provável que o antigo dono tenha achado por bem se livrar do bichano problemático. É só uma suposição, mas muito provável, pois deu trabalho tratar do Bento. Trabalho esse que nem todos têm disposição de ter. Afinal, é só um gato...
Não, ele não é só um gato. É a representação viva e material do que há de melhor na essência humana. A capacidade de amar, pelo simples ato de amar. E de cuidar, pela consciência de que é isso que mais nos dignifica e nos humaniza. Que venham outros...Eugenio Mussak
Foi assim que o funcionário do estacionamento falou com seu colega, referindo-se à Lu, minha esposa, que eventualmente deixava ali o carro para lavar. É que eles tinham encontrado em um canto do estacionamento um gatinho magro e assustado, evidentemente perdido ou abandonado, e não sabiam o que fazer com ele. A Lu era a solução, afinal, parecia ter "coração mole e atitude", a combinação perfeita para resolver o problema.
Dito e feito. O ar de desamparo do bichano foi o gatilho que acionou o tal "coração mole" da amante de bichinhos e desencadeou a ação correspondente, providenciada pela "atitude" da executiva bem-sucedida.
Quando ela o pegou no colo, o destino falou bingo!, e, do estacionamento, o sortudo gatinho foi direto para o pet shop, onde a veterinária Beth, que às vezes, brincando, chamamos de pediatra, pois cuida de nossas cachorrinhas desde que eram filhotinhos travessos, o examinou e medicou. "Ele só está faminto e estressado", explicou ela. Mais tarde ela iria diagnosticar outro problema...
Liberado pela veterinária, Bento (esse é seu nome) foi adotado, com direito a ração, cama, poste arranhador, caixa de areia e, o mais importante, muito amor. Além disso, ele ganhou a companhia da shih tzu preta e da maltês branca, nossas cachorras.
Dizem que as pessoas são divididas entre as que gostam de cachorros e as que gostam de gatos. As que gostam de cachorros seriam mais carentes, por isso adotam bichos que dão mais atenção, paparicam, fazem festa quando chegamos. Quem gosta de gatos é mais resolvido, precisa de menos validação afetiva. Se é assim, então sou um carente, pois sempre preferi cachorros. Na verdade, o que sempre me encantou foi a imensa capacidade de comunicação e interação que os cães têm conosco. Lembro de meus cachorros da infância, meus inseparáveis companheiros de brincadeira e aventuras. Sem eles, minha vida teria tido menos graça.
Só conheci de verdade os gatos bem mais tarde, quando minha filha Débora foi estudar fora e deixou sob nossa guarda provisória a Malha, uma felina que arrebatou meu coração. Travessa, inteligente, elástica, perfeita como máquina fisiológica, a Malha conquistou a Preta, com quem brincava de correr, e a todos os humanos, cujos olhos fitava profundamente. Só que a Débora voltou e levou a gata embora. Saudades.
O Bento veio para ocupar o espaço que estava vago, e foi muito bem-vindo. Só que a Preta, agora mais velha e calma, não se transformou na companheira de brincadeiras que o Bento, cuja idade não conhecemos, mas que é bem jovem, queria. "Simples" - disse a executiva da casa. "Vamos arrumar mais um gato!". Claro, mais um gato - nada mais lógico... Afinal, temos tanto espaço, não é mesmo?
Mal tive tempo de absorver o impacto da proposta quando já aparecia mais um filhote. "Este é da raça ragdoll, que significa boneca de trapo, em inglês. Tem esse nome porque fica todo relaxado quando é segurado no colo" - explicou Lu. "Vai se chamar Francisco" - informou.
E eis que o Francisco, além de ser dono de uma beleza impressionante, encantou a todos com sua meiguice. E formou com o Bento uma dupla inseparável. A simpatia de ambos trouxe ainda mais alegria para nossa casa.
Nós e os animais
A relação dos humanos com os animais é longa, e poderia ser dividida em três fases. Na primeira, os homens conferiam a certos animais qualidades divinas e os cultuavam como representações de deuses. Para os antigos egípcios, por exemplo, Rá, a principal divindade, era o deus-sol, e Bastet, que representava a fertilidade e o amor, tinha a forma de um gato.
A segunda fase, que pode ser chamada de econômico-utilitarista, é marcada pela percepção da utilidade de certos animais como fonte de alimento, abrigo, proteção, transporte e, como consequência, riqueza. O Brasil é, por exemplo, o maior exportador mundial de carne bovina e de aves, e precisa disso para equilibrar a balança de pagamentos.
Ainda como parte dessa fase, encontramos o uso de animais para fins científicos. Esse é, provavelmente, o ponto mais polêmico. Teríamos, em nome da ciência, o direito de submeter animais a experiências com potencial de fazê-los sofrer? Teríamos, por outro lado, a opção de não fazê-lo, sabendo que isso pode salvar vidas humanas? Os recentes acontecimentos confirmam a importância dessa questão ética. A discussão está em aberto.
Mas é sobre a terceira fase que escrevo. Essa poderia ser chamada de "fase afetiva", considerando a proximidade emocional entre os homens e os animais, incluindo as relações muito próximas com os chamados bichos de estimação, ou, simplesmente, pets. Em inglês, a palavra pet tem dois significados. Como substantivo, significa bichinho de estimação. Como verbo, to pet quer dizer acariciar.
Adoro acariciar meus bichos e receber abanos de rabos. Mas gostaria de questionar o verbo "servir". Será que a melhor maneira de entender essa relação é conferir uma serventia para ele? Não seria essa uma forma de transformá-lo em um objeto de uso e, assim, diminuir sua essência?
De fato, o homem, em sua arrogância de "ser superior", dividiu os outros seres vivos entre os que "servem" e os que "não servem". Mas, para que serve uma iguana, por exemplo? Ora, para viver sua vida, para integrar um ciclo da natureza. Ela não tem a obrigação de nos servir.
Em uma visão ampliada, a serventia de um ser vivo é viver e conviver. Manter-se vivo e contribuir com a vida de outros, seja em quantidade ou em qualidade. Então, quem adota um cachorro, um gato ou outro bichinho qualquer não está comprando um brinquedo - está iniciando uma relação de reciprocidade. Trata-se de um mutualismo. O servir tem duas mãos.
Humanizar
Eu tenho uma visão pessoal sobre esses personagens peludos: eles são seres não humanos que, curiosamente, humanizam os ambientes. Talvez porque sua simplicidade, espontaneidade e amorosidade liberam, nos humanos, o que eles têm de melhor. As relações entre as pessoas, cheias de expectativas, cobranças e julgamentos, muitas vezes nos embrutecem e nos fazem representar papéis que não queríamos. Diante de um bichinho, somos o que somos, sem máscaras. Isso é o que os bichos fazem de melhor por nós. Nos deixam melhores.
Mas não podemos deixar de observar a reciprocidade. Afinal, o que eles esperam de nós? Basta dar-lhes comida, abrigo e atenção? Acho que não. Acho que quem adota um bicho deve considerar que ele tem o direito de ser feliz. Só que isso dá algum trabalho, preocupação, despesa. Gente sem essa disposição não deveria adotar um.
Sobre o Bento, temos uma desconfiança: a de que ele foi abandonado porque estava dando muito trabalho. Nossa veterinária descobriu que ele havia sido castrado, o que mostra que já tivera um dono. Só que a cirurgia havia sido mal feita, e um fio cirúrgico ficara aderido ao intestino e saía pelo ânus cada vez que o coitadinho fazia cocô. Ele então saía pela casa deixando cair pelotinhas que ficavam presas ao tal fio.
Como, de manhã, a casa amanhecia cheia de marcas indesejáveis, sobre as quais era fácil pisar e fazer ainda mais sujeira, é bem provável que o antigo dono tenha achado por bem se livrar do bichano problemático. É só uma suposição, mas muito provável, pois deu trabalho tratar do Bento. Trabalho esse que nem todos têm disposição de ter. Afinal, é só um gato...
Não, ele não é só um gato. É a representação viva e material do que há de melhor na essência humana. A capacidade de amar, pelo simples ato de amar. E de cuidar, pela consciência de que é isso que mais nos dignifica e nos humaniza. Que venham outros...Eugenio Mussak
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