sábado, 5 de abril de 2014

Fumei a vida por meus quarenta e dois anos...




Comecei precocemente, aos 13 anos. Roubava um ou outro cigarro da carteira de minha mãe e fugia escondido com um amigo, Alberto, pra fumar. Era sempre no alto da árvore que tinha perto de casa. Ignorantes a qualquer lei física, sabíamos que dali não seríamos vistos e que a fumaça quente subiria para que ninguém sentisse seu cheiro além de nós. Ali, naquela árvore, falamos de metafísica. Falamos de Deus, de bocetas, de escola, de tetas, de problemas familiares, de coxas; no topo daquela árvore, entre conversas de torpe filosofia, vimos a primeira Playboy da nossa vida. Associei aquela furtividade, aquela marginalização de uma mera brincadeira a um ato sagrado. No topo daquela árvore descobri as primeiras intimidades e cumplicidades da minha vida.

Alberto e eu continuamos a crescer juntos e, com 14 anos, dávamos nossos pulos para descolar os cigarros. Quando saíamos em grupo, colocávamos eles atrás da orelha e olhávamos de soslaio para as garotas. Pensava que seus risos eram de vergonha e provocação, mas hoje sei que elas riam do quanto estávamos bobos daquele jeito. Aliás, é incrível como essa imagem em específico mostra o que foi o cigarro durante tanto tempo pra mim: um acessório. Eu não fumava pelos mesmos rituais dos 13 anos, de quando tinha que fazer tudo de forma furtiva para não ser pego, quando aquela desculpa de fumar um em cima da árvore se tornava uma abertura para que eu descobrisse a vida junto de outro amigo. Aos 14 anos, o cigarro era algo que eu colocava atrás da orelha e queimava dentro dos pulmões, e era isso porque eu era uma cara legal e caras legais eram assim.

O cigarro voltou a ter sentido para mim quando tinha meus 16 anos. Me estirei por entre os lençóis em que acabara de ter minha primeira transa e aspirei nicotina nos pulmões. E então o quarto se fez sólido, a mulher nua perto de mim transmitiu calor pelo ar e senti a umidade pingando na ponta do meu pau. E meu coração apertava, espremido entre os pulmões cheios de nicotina. Eu estava fumando enquanto descobria o que era amor.

Aos 17, após o término com a garota, o cigarro se tornou um novo ritual. Eu a amava. Respirava fumaça. Eu também a odiava. Espirava fumaça. Eu queria voltar pras suas coxas. Respirava fumaça. Eu tinha mágoa ao imaginar seu toque. Espirava fumaça.

Até os 22, estendi meu costume de fumar após o sexo. Mas era sempre tentando resgatar a sombra daquele primeiro fumo, sempre tentando realinhar a nitidez do quarto, o calor das mulheres, a umidade nos lençóis e o tambor por entre os pulmões. Porém, numa noite alta essas coisas aconteceram e temi em soltar a fumaça dos pulmões, temi deixar aquela estranha linearidade das coisas tremular.

Até os 30 anos, nunca mais espirei. Guardei aquela nicotina nos pulmões e não meti nenhum outro cigarro na boca. Tudo em nome de Elisângela. Com ela tive dois filhos, uma casa, um carro, vários sonhos. E um amor. Mas eu não guardei a fumaça por tempo suficiente. Em dado momento, ela começou a escapar de meus pulmões, a sair pela boca, pelo nariz, a formar umidade debaixo de meus olhos. E então eu soltei tudo e Elisângela se foi.

Desde sua partida, voltei a fumar. Fumei em noites insones. Fumei em outras camas, com mulheres de quem não lembro o nome. Fumei em bares com amigos. Fumei em bares sozinho. Fumei nas ruas da minha cidade verde e aspirei a fumaça de suas árvores queimadas. Fumei de frente a televisões, ao lado de rádios, na frente de livros abandonados e em cima de registros fotográficos.

Elisângela partiu e eu fiquei segurando a vida na ponta dos dedos. Acendi a ponta dela e aspirei. E a vida me preencheu, mas ela sufocava. Então soltei. E repeti isso. Repeti isso muitas vezes.

E assim as pessoas me repetiam que eu deveria parar de fumar. Meu dentista, meu médico, meu patrão, meus amigos, meus filhos e se eu tivesse um cachorro ele ficaria me olhando com olhos esbugalhados enquanto fumo.

Meu inbox do Facebook, hoje, está lotado de envios sobre Eric Lawson, modelo da Marlboro que morreu de câncer pulmonar. “Olha aí”, dizem os comentários que seguem a notícia, “cê deveria se cuidar enquanto é novo.”

O cara morreu com 72 anos. Sabem, eu morreria com 60 de forma tranquila. Sério, me pouparia tantas dores de velhice. E o cara aguentou até os 70!

Dispenso os comentários de que eu deveria parar de fumar. Agradeço os votos de apreço pelo gesto, mas dispenso. Dispenso porque ninguém fumou como eu fumei. Ninguém teve com o cigarro aquilo que eu tive.

Nenhum deles, quando me pede que eu pare de fumar, sabe que naquele cigarro está minha vida. E que eu não posso mais parar de aspirá-la e espirá-la. Que eu só largo isso quando queimar meus dedos e a bituca apagar na sarjeta.


  Fernando Azevedo
Foto: Fumei a vida #Marlboro #EricLawson 

Fumei a vida por meus quarenta e dois anos. 

Comecei precocemente, aos 13 anos. Roubava um ou outro cigarro da carteira de minha mãe e fugia escondido com um amigo, Alberto, pra fumar. Era sempre no alto da árvore que tinha perto de casa. Ignorantes a qualquer lei física, sabíamos que dali não seríamos vistos e que a fumaça quente subiria para que ninguém sentisse seu cheiro além de nós. Ali, naquela árvore, falamos de metafísica. Falamos de Deus, de bocetas, de escola, de tetas, de problemas familiares, de coxas; no topo daquela árvore, entre conversas de torpe filosofia, vimos a primeira Playboy da nossa vida. Associei aquela furtividade, aquela marginalização de uma mera brincadeira a um ato sagrado. No topo daquela árvore descobri as primeiras intimidades e cumplicidades da minha vida.

Alberto e eu continuamos a crescer juntos e, com 14 anos, dávamos nossos pulos para descolar os cigarros. Quando saíamos em grupo, colocávamos eles atrás da orelha e olhávamos de soslaio para as garotas. Pensava que seus risos eram de vergonha e provocação, mas hoje sei que elas riam do quanto estávamos bobos daquele jeito. Aliás, é incrível como essa imagem em específico mostra o que foi o cigarro durante tanto tempo pra mim: um acessório. Eu não fumava pelos mesmos rituais dos 13 anos, de quando tinha que fazer tudo de forma furtiva para não ser pego, quando aquela desculpa de fumar um em cima da árvore se tornava uma abertura para que eu descobrisse a vida junto de outro amigo. Aos 14 anos, o cigarro era algo que eu colocava atrás da orelha e queimava dentro dos pulmões, e era isso porque eu era uma cara legal e caras legais eram assim. 

O cigarro voltou a ter sentido para mim quando tinha meus 16 anos. Me estirei por entre os lençóis em que acabara de ter minha primeira transa e aspirei nicotina nos pulmões. E então o quarto se fez sólido, a mulher nua perto de mim transmitiu calor pelo ar e senti a umidade pingando na ponta do meu pau. E meu coração apertava, espremido entre os pulmões cheios de nicotina. Eu estava fumando enquanto descobria o que era amor.

Aos 17, após o término com a garota, o cigarro se tornou um novo ritual. Eu a amava. Respirava fumaça. Eu também a odiava. Espirava fumaça. Eu queria voltar pras suas coxas. Respirava fumaça. Eu tinha mágoa ao imaginar seu toque. Espirava fumaça.

Até os 22, estendi meu costume de fumar após o sexo. Mas era sempre tentando resgatar a sombra daquele primeiro fumo, sempre tentando realinhar a nitidez do quarto, o calor das mulheres, a umidade nos lençóis e o tambor por entre os pulmões. Porém, numa noite alta essas coisas aconteceram e temi em soltar a fumaça dos pulmões, temi deixar aquela estranha linearidade das coisas tremular. 

Até os 30 anos, nunca mais espirei. Guardei aquela nicotina nos pulmões e não meti nenhum outro cigarro na boca. Tudo em nome de Elisângela. Com ela tive dois filhos, uma casa, um carro, vários sonhos. E um amor. Mas eu não guardei a fumaça por tempo suficiente. Em dado momento, ela começou a escapar de meus pulmões, a sair pela boca, pelo nariz, a formar umidade debaixo de meus olhos. E então eu soltei tudo e Elisângela se foi.

Desde sua partida, voltei a fumar. Fumei em noites insones. Fumei em outras camas, com mulheres de quem não lembro o nome. Fumei em bares com amigos. Fumei em bares sozinho. Fumei nas ruas da minha cidade verde e aspirei a fumaça de suas árvores queimadas. Fumei de frente a televisões, ao lado de rádios, na frente de livros abandonados e em cima de registros fotográficos. 

Elisângela partiu e eu fiquei segurando a vida na ponta dos dedos. Acendi a ponta dela e aspirei. E a vida me preencheu, mas ela sufocava. Então soltei. E repeti isso. Repeti isso muitas vezes. 

E assim as pessoas me repetiam que eu deveria parar de fumar. Meu dentista, meu médico, meu patrão, meus amigos, meus filhos e se eu tivesse um cachorro ele ficaria me olhando com olhos esbugalhados enquanto fumo. 

Meu inbox do Facebook, hoje, está lotado de envios sobre Eric Lawson, modelo da Marlboro que morreu de câncer pulmonar. “Olha aí”, dizem os comentários que seguem a notícia, “cê deveria se cuidar enquanto é novo.”

O cara morreu com 72 anos. Sabem, eu morreria com 60 de forma tranquila. Sério, me pouparia tantas dores de velhice. E o cara aguentou até os 70! 

Dispenso os comentários de que eu deveria parar de fumar. Agradeço os votos de apreço pelo gesto, mas dispenso. Dispenso porque ninguém fumou como eu fumei. Ninguém teve com o cigarro aquilo que eu tive. 

Nenhum deles, quando me pede que eu pare de fumar, sabe que naquele cigarro está minha vida. E que eu não posso mais parar de aspirá-la e espirá-la. Que eu só largo isso quando queimar meus dedos e a bituca apagar na sarjeta.

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Fernando Azevedo tem 18 anos e é feito de mais anseios de futuro do que de passados para se gabar. Escreve crônicas toda segunda-feira direto do interior de São Paulo, onde finge viver.

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