Encontrei uma senhora com sacolas de mercado subindo as escadas
do hospital.
Perguntei se poderia ajudar. Minha mãe sempre me ensinou
que não custa nada ser educado.
Carreguei as sacolas até o terceiro
andar. Ela se despediu com um beijo em minha testa.
– Vá com Deus, meu
anjo.
Fiquei levemente encabulado, minha testa estava úmida, e ela secou
meu suor com seu beijo.
Içara, soube mais tarde, acompanhava seu marido
André.
Ele tem câncer em estado avançado, metástase nos ossos. Situação
grave.
Os dois partilham um casamento de 30 anos. São amigos de minha
amiga Cíntia Moscovich.
Já testemunhei o casal abraçado, tomando vinho,
comendo risoto, cantando músicas em bar no Moinhos de Vento.
Não lembrei
de sua feição na hora. Quando ofereci ajuda, jurei que era uma estranha.
Mostrava-se toda abatida, acuada pela tristeza, as olheiras de coador de
café.
Eu me desculpei quando a revi subindo a ladeira da Ramiro
Barcelos. Expliquei que não a reconheci naquele dia.
Ela concordou
comigo.
– Tampouco me reconheço, querido.
Sua simplicidade, sua
humildade, sua honestidade me desarmaram.
Já não queria carregar suas
sacolas, mas seus olhos.
Içara sofre monstruosidades. Sofre essa viuvez
devagar. Essa viuvez vindo. Essa viuvez injusta informando seu coração pouco a
pouco da tragédia.
Içara vive sendo enganada pela esperança e não
desiste de acordar, dormir, acordar, dormir.
Com a fé exausta, me
encarou profundamente. Colocou as mãos em meus ombros e pediu para que eu
rezasse por uma coisa.
Uma única coisa. Nem era capaz de pedir para seu
marido melhorar. Nem era capaz de suplicar o retorno da rotina.
Nem era
doida de encomendar milagre, de que eles possam viajar para Grécia, admirar os
afrescos da Itália, partilhar novamente de música, gastronomia e literatura.
Içara pede uma só coisa, uma só coisinha: dormir mais uma noite de
conchinha com seu marido. Uma só noite soletrando a respiração do seu homem.
Uma só noite com as pernas entrelaçadas, as cabeças encostadas para
igual horizonte. Uma só noite com a paz dos lençóis de casa e os travesseiros
lavados. Uma só noite despertando ao mesmo tempo, com a mesma vontade de mate e
varanda.
Só dormir de conchinha mais uma vez. Uma noite fora do
hospital, do soro, do medo de morrer.
Uma noite absolutamente normal. A
normalidade no amor é a perfeição.
(Fabrício Carpinejar)
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