"No judaísmo, as celebrações sempre acontecem em volta da mesa farta, com cada prato tendo um significado especial", conta Andréa. Não é diferente em muitas outras religiões, nas quais o alimento, mais que nutrir, tem um significado próprio associado à divindade. Ao longo da história, muitos povos viam a comida como uma dádiva, um milagre divino. "Muito antes de as principais correntes religiosas de hoje se consolidarem (como o cristianismo, o islamismo e o próprio judaísmo), já eram comuns os ritos de oferendas aos deuses, bem como as festas que vão celebrar as colheitas, fundamentais para aplacar a fome dos povos antigos", diz Sandro Dias, professor de História daGastronomia do Centro Universitário Senac, em Águas de São Pedro (SP). Nesse contexto, a refeição adquire uma simbologia toda especial, repleta de significados.
Andréa se lembra em especial do Rosh Hashanah, o Ano Novo judaico, em que logo depois de uma celebração na sinagoga, as famílias voltam para casa para comer. A refeição começa sempre com a maçã, que representa o início, remetendo a Adão e Eva (responsáveis pela primeira e mais famosa transgressão alimentar da humanidade). Depois, serve-se o Chalá (pão em formato circular, representando algo cíclico, sem fim) com patês e, em seguida, os pratos. O peixe é um dos poucos animais representados à mesa, por ele só nadar para a frente - como os judeus esperam que seja seu novo ano. "Uma das minhas mais doces lembranças é a torta de maçã que minha avó fazia para essa data", relembra Andréa.
É da admiração de ver a avó cozinhar nessas ocasiões que Andréa diz ter começado a se encantar com a cozinha. Ela separava as espinhas dos peixes, ajudava a quebrar os ovos. E, assim, foi pegando gosto pelo ato de cozinhar. Até que, depois de deixar de lado a profissão de publicitária, ela resolveu abrir em 2007 seu primeiro restaurante, uma delicatessen especializada em pratos judaicos. "Recebia muita gente que, como eu, tinha lembranças dessa gastronomia festiva, mas que nem sempre tinha a chance de comê-la no dia a dia", afirma ela. Hoje, em seu novo restaurante, o AK Vila, na Vila Madalena, em São Paulo, passou a oferecer um cardápio mais "variado". Mas ainda mantém algumas iguarias do repertório gastronômico judaico, como uma bruschetta que leva tâmara (um dos sete elementos bíblicos citados no Deuteronômio), falafel, pastrami e goulash de vitela - esta última uma receita em homenagem à avó húngara. "Mesmo inconscientemente, acabo me voltando a esses sabores, não tem jeito. É algo que faz parte da minha história e da minha relação de adoração com a gastronomia", define.
Comer ou não comer
O repertório culinário passa a fazer parte de celebrações e ocasiões tão especiais que ganham um significado e um valor únicos. Inclusive de privação, em alguns casos. "Abstinência e proibição, constante ou temporária, de certos alimentos são, geralmente, considerados meios de atingir estado de graça e santidade", afirma Ariovaldo França, autor do livro De Caçador a Gourmet - Uma História da Gastronomia (Editora Senac). Para os israelitas, por exemplo, o uso de fermento se transformou em objeto de restrições religiosas, e a fermentação, símbolo de corrupção e deteriorização. Na doutrina hindu, o consumo de carne de vaca é proibido, baseado no conceito de reencarnação. A vaca é considerada descendente direta de um espírito sagrado para esse povo, o Kamadhenu. "Mas é interessante notar que 1400 anos antes de Cristo, na Índia, o Rigveda [o mais antigo livro da literatura hindu] descreve uma sociedade pastoril que se deleitava com festins em que se comia a carne de vaca", afirma França. Em tempos que precedem a Páscoa, seguidores mais fervorosos da cultura católica cristã não consomem carne vermelha como forma de se abster de comer algo nobre em homenagem ao sacrifício de Jesus, que morreu para salvar seus seguidores. Há quem prefira se abster de outros prazeres culinários (como doces, chocolate, álcool etc.) para encarar os 40 dias da Quaresma.
Essas regras comprovam que o ser humano é cerimonioso no comer e tem uma atitude complexa em relação ao alimento. "Não se come apenas para saciar a fome. O alimento se reveste de valor simbólico e, eventualmente, se transforma em objeto ritual", diz França. Nas culturas tradicionais, o alimento de base está frequentemente associado a uma divindade e sua produção representa parte da atividade dessa relação. No candomblé, por exemplo, os orixás representam símbolos e forças da natureza - como fogo, água, vento etc. - e cada um deles tem uma preferência gastronômica que deve ser meticulosamente seguida nas oferendas. Por isso, só quem cozinha nos terreiros são as iabassês, mães de santo que guardam os segredos do preparo das receitas e precisam seguir as regras de sua preparação - que vão desde as vestes que elas precisam utilizar até cuidados como não misturar utensílios em receitas para orixás diferentes.
Necessidade de conexão
Curiosa com o fato de cada orixá ter seu prato representativo e com a riqueza gastronômica que isso permite em combinações de sabores, a chef Bel Coelho desembarcou em Salvador para passar uma semana no terreiro Gantois, um dos mais conhecidos da capital baiana, a fim de desvendar os segredos dos preparos das iabassês e conhecer mais esse ritual. "Não sou do candomblé nem sigo uma religião específica, mas fiquei intrigada em conhecer uma crença em que os alimentos tinham papel tão importante", conta. Da experiência, Bel criou um cardápio especial para o projeto Clandestino, no qual recebe no segundo andar de seu restaurante Dui, em São Paulo, comensais para provar menus degustação, sempre baseados em um tema. "Mais do que no paladar e nas receitas em si, me abri para basear minhas criações nas cores vivas, nos cheiros e na mitologia de cada orixá. Como não podia cozinhar, observei tudo o que pude", diz.
Para homenagear Iemanjá, talvez a orixá mais conhecida dos não adeptos do candomblé, Bel resolveu apostar em sua vaidade, servindo um robalo cozido e grelhado sobre pérolas de leite de coco e uma farinha de coco tão fina que se assemelha a areia. O prato onde a receita é servida é feito de espelho, como o utensílio que a rainha do mar carrega nas mãos. "A receita ainda leva geleia de rosas, em alusão às oferendas feitas a ela. E o leite de coco foi escolhido para simbolizar o lado materno de Iemanjá". Outros 15 orixás ganharam, pelas mãos da chef, releituras e inspirações em sua representatividade mitológica. "Realmente me fascina essa necessidade do ser humano de se conectar. O rito é talvez a forma mais primária de conexão que temos, por isso ela é tão representativa."
Por estar ligada a esse conceito de conexão e celebração da vida, comida não combina com conflitos. Essa, pelo menos, é a máxima do chef armênio Kevork Alemian, que, em 2001, fundou a ONG Chefs4Peace (chefs pela paz, em tradução livre). O intuito dele e de outros cozinheiros que se uniram à empreitada é promover a convivência pacífica entre povos cuja prática religiosa está associada à guerra e à discórdia. A proposta é unir muçulmanos, judeus e católicos por meio da comida. Hoje composta por 20 cozinheiros, a Chefs4Peace tenta resgatar receitas ancestrais que deram origem aos pratos que têm valor sagrado para cada uma dessas religiões. "Pesquisamos em livros sagrados o que se comia na origem da culinária judaica, da alimentação cristã e dos pratos de influência árabe, que deram origem aos costumes dos muçulmanos", diz Alemian. O foco são alimentos como o sal, o pão e até o azeite de oliva, que têm papel fundamental para essas religiões. "Eles são o que eu chamo de ingredientes da paz."
Para fomentar essa convivência pacífica e incentivar não só a troca de receitas mas também o intercâmbio de pontos de vista, a ONG fundada por Alemian promove eventos em que chefs dessas doutrinas diferentes se reúnem para cozinhar juntos, em eventos e palestras em todo o mundo. Agora o projeto é fazer funcionar uma escola que já opera de forma experimental no vilarejo de Abu Gosh, a 10 km da cidade sagrada de Jerusalém, para receber jovens das mais diversas religiões e etnias. "Queremos mostrar que, onde há a devoção pela comida, os conflitos não têm lugar para existir." É um projeto bastante otimista para uma região em que as guerras estão enraizadas no cotidiano dos moradores. "Nossa arma para lutar pelo que acreditamos é a faca, que pode ser perigosa, mas também conciliadora, quando a usamos para criar pratos deliciosos e trocas significativas", conclui Alemian. Algo que só a crença no poder transformador da alimentação pode oferecer.
Rafael Tonon
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