Nossos ouvidos podem resistir às palavras rudes e cruéis, mas foram idealmente planejados para amenidades e doçuras.
Testados no limite do sofrimento, podemos assumir respostas diferentes: uns se tornam resistentes às intempéries de afeto e sobrevivem com as cicatrizes ásperas da amargura. A resistência marca o sobrevivente com sentimentos poderosos, mas negativos, como rigidez, rancor e vingança.
Outros, por alguma magnânima diferenciação interna, ultrapassam a provação com o que se convencionou chamar resiliência, ou seja, a capacidade de superar a tragédia e emergir dela como uma pessoa melhor — capaz, por exemplo, de se empenhar para que o mal que lhe afligiu não alcance seus semelhantes.
Quem se debruça nas histórias dos resistentes e dos resilientes percebe de imediato a avassaladora força das palavras proferidas, seja pela desconstrução afetiva da crueldade, seja pelo bálsamo generoso da esperança.
As versões sobre as chances oncológicas do Hermeto eram tão diferentes na opinião de dois colegas da mesma clínica, que a esposa resolveu aproveitar um momento de solidão em casa para esclarecer a real condição do marido. Por alguma razão, preferiu ligar primeiro para o pessimista, e sentada no banquinho do bar, ouviu com todas as letras que ela devia se preparar para o pior porque, afinal, a expectativa de sobrevida era muito curta.
Uma hora depois, ela foi admitida num ambulatório para tratar uma sequela hemorrágica da sutileza de escopeta daquela comunicação que lhe jogara ao chão, desacordada. A cicatriz da sutura no queixo seria mais fácil de esquecer do que a insensibilidade do médico, que incrivelmente não percebeu que esta suposta preparação é apenas uma cruel antecipação da dor que virá se tiver de vir. Não se aprende a suportar melhor o sofrimento por ter-se começado antes.
A Gabi tomou o primeiro avião disponível, plena de pavor com a notícia de que o marido, acidentado na serra fluminense, estava para ser transferido para um hospital no Rio que seria suficientemente capacitado para enfrentar a gravidade das lesões. A viagem acompanhando a remoção entre montanhas e varando a madrugada no rastro da ambulância, o anúncio de um trauma craniano severo, parada cardíaca, inundação dos pulmões por vômito e todas as ameaças implícitas, justificavam o tremor dos lábios e o choro intermitente. Com o coração aos solavancos, ela se preparou para o primeiro boletim. Barros Franco, que o recebera, é um médico competente e bem resolvido. Com voz firme, que inspira confiança, descreveu os achados graves e as metas do tratamento. Não omitiu riscos, mas não subtraiu esperança. Quando a Gabi, no desespero, contou que eles tinham uma linda filhinha de cinco anos e que estavam se preparando para o segundo, ele foi definitivo:"Pois então se organize, porque no batismo do próximo filho de vocês, vamos ter um médico carioca em Porto Alegre!". Quando deixei o hospital, no final daquela tarde, esta história já tinha sido repetida várias vezes. Num dia para ser esquecido, aquela tinha sido a frase para lembrar.
O futuro continuava incerto, mas por que pensar no pior, se há quem ofereça esperança?
JJCamargo
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