quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Sobre urubus e beija flor...



 Eu estava terminando a leitura de um artigo científico. De vez em quando é bom ler ciência.

 A gente fica mais sabido. Tudo explicadinho.

 No final das contas, tudo se deve a esse gigantesco infinitamente pequeno disquete que existe 

dentro das células do corpo chamado DNA.

 Nele está gravado o nosso destino.

Antes de existir, eu já estava “programado” inteiro: a cor dos meus olhos, as linhas do meu rosto, a

 minha altura, os cabelos brancos precoces, o seu adeus que nada consegue evitar, o sexo.

Dizem alguns que lá está até um relógio que marca quantos anos eu vou viver.

 E é implacável: o que a natureza põe, não há homem que disponha

Programa mais complicado que o DNA não existe. Tudo tem de acontecer direitinho, na ordem certa.

 E quase sempre acontece. Quase sempre… Vez por outra uma coisinha não acontece segundo o

programado. E o resultado é uma coisa diferente.

Assim aparecem os daltônicos, que não vêem as cores do jeito como a maioria vê. Ou o canhoto, que

 tem de tocar violão ao contrário.

De vez em quando, uma criança com síndrome de Down.

E quem não me garante que Mozart não foi também um equívoco do DNA?

 Pelo que sei, a receita não se repetiu até hoje…

 O artigo prosseguia para mostrar que é assim que, vez por outra, aparecem pessoas com uma

 sensibilidade sexual diferente: os homossexuais. Tudo aconteceu lá no DNA: um relezinho que 

funcionou de maneira não programada. Primeiro, caiu o relê que determina o sexo, se vai ser homem 
ou mulher. Depois, o relê que determina os caracteres secundários, que fazem a “imagem” do 

homem e da mulher. Por fim, o relê que determina o objeto que vai disparar as reações químicas e 

hidráulicas necessárias para o ato sexual.

 Esse objeto é uma imagem. Nos heterossexuais, é a imagem de uma mulher. Nas mulheres 

heterossexuais, é a imagem de um homem que faz o seu corpo estremecer.

Acontece, entretanto, que por vezes esse último relê não funciona e a pessoa fica ligada à imagem 

do seu próprio sexo.

 A imagem que vai como-ver seu corpo é uma imagem semelhante à sua.

E isso que é ser homossexual. O homossexualismo é uma condição estética.

 Tudo por obra do DNA.

 Nada tem a ver com educação, com a mãe ou com o pai.

 Ninguém é culpado, pois culpa só pode existir quando existe uma escolha. Mas ninguém escolheu. oi 

Foi o DNA que fez.

 E nem pode ser pecado. Pois pecado só existe onde existe culpa. E nem pode ser curado, pois o que 

a natureza fez não pode ser desfeito

E foi nesse momento eu estava meditando sobre essas coisas que fogem à compreensão dos

homens, como a origem do DNA, o processo pelo qual ele foi estabelecido, se por acidente, se por 

tentativa e erro, se por obra de algum programador invisível 

— que uma coisa estranha aconteceu:

 um barulho como eu nunca ouvira, no meu jardim. Tirei os olhos do artigo, olhei através do vidro da

 janela e o que vi — inacreditável — um urubu, sim um urubu, batendo furiosamente as asas como s 

fosse um beija-flor, diante de uma flor de alamanda sugando o melzinho.

 Achei que estava tendo alucinação, mas não. Era verdade.

 O urubu, ao ver meu espanto, pousou no galho de uma árvore de sândalo e começou a se explicar,

do jeito mesmo que acontecia. “Sofro muito. Nasci diferente. Urubu, todo mundo sabe, gosta de 

carniça. Basta que se anuncie carcaça de algum cavalo morto, os olhos dos urubus ficam brilhando,

a saliva escorre pelos cantos do bicos, a língua fica de fora — e lá vão eles churrasquear.

 Urubu acha carniça coisa fina, manjar divino!

Eles não a trocariam por uma flor de alamanda por nada nesse mundo!

 Mas eu nasci diferente. Meus pais, coitados, morreram de vergonha quando ficaram sabendo que 

eu, às escondidas, sugava o mel das flores.

Compreensível.

O sonho de todo pai é ter um filho normal, isto é, igual a todos. Urubu normal gosta de carniça. Eu 

não gostava. Era anormal. Fiquei sendo objeto de zombaria.

Na escola, logo descobriram minhas preferências alimentares. E impossível esconder. Se todo o 

mundo está comendo carniça e você não come, que explicação você pode dar?

Aí meus pais começaram a sofrer, pensando que eu era assim por causa de alguma coisa errada que

 tinham feito na minha educação.

 Me mandaram para o padre. Severo, ele abriu um livro sagrado e disse que Deus, o Grande Urubu, 

estabelecera que carniça é o manjar divino.

 Urubu, por natureza e por vontade divina, tem de comer carniça. Chupar mel é contra a natureza. 

Urubu que chupa mel de flor está em pecado mortal.

Terminou dizendo que eu iria para o inferno se não mudasse meus hábitos alimentares.

E me deu, como penitência, participar de cinco churrascos. Saí de lá me sentindo o mais miserável 

dos pecadores.

 Mas o medo não foi capaz de mudar o meu amor pelas flores. Não cumpri a penitência.

Meus pais me mandaram, então, para um psicanalista que cobrava R$120,00 por sessão. 

Todos os sacrifícios são válidos para fazer o filho ficar normal. A análise durou vários anos.

Ao final, fui informado que eu gostava de mel porque odiava meu pai, a quem eu queria matar, para 

ficar sozinho com a minha mãe.

 Aí, além de pecador, passei a sofrer a maldição de Édipo.

 Continuei a gostar do mel da flores.

 Por isso estou aqui, no seu jardim”.

 Houve um momento de silêncio e eu vi o que nunca havia visto: um urubu chorando.

 Notei que suas lágrimas não eram diferentes das minhas.

 Aí ele continuou: “Gosto das flores. Não quero gostar de carniça. Não quero ficar igual aos outros.

 Só tenho um desejo: gostaria de não ter vergonha, gostaria que não zombassem de mim,

chamando-me de ‘beija flor’, eu não sou beija-flor. Sou um urubu.

Eu gostaria de ter amigos… O que me dói não é a minha preferência alimentar, pois não fui eu quem 

me fiz assim. O que me dói é minha solidão.

 Gosto de flores por culpa do DNA. Mas a minha solidão é por culpa dos outros urubus, que poderiam 

ser meus amigos”.

 Ditas essas palavras, ele se despediu e voou par uma alamanda do jardim vizinho.

E eu fiquei a pensar que o mundo seria mais feliz se todos pudessem se alimentar do que gostam,

sem ter de se esconder ou se explicar.

 Afinal ninguém é culpado por aquilo que a natureza faz ou deixou de fazer.


Rubem Alves






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