Acontece com todo mundo. Você está lá, como toda gente se equilibrando entre sua pequena multidão de afazeres, levada pelo fluxo impiedoso de seus eventos diários, na correnteza involuntária de um dia depois do outro, e sobre sua testa chuvisca um sentimento inesperado.
Sem susto, você o reconhece de pronto. Ele é um velho e íntimo sentimento familiar. É a saudade do que você nunca viveu.
Você não sabe o que fazer com ela, então espera que ela vá embora. Ela se senta à sua frente, abre uma bolsa de viagem e de lá escapa um bando de pequenas saudades afoitas, desvairadas como cães que escapam de casa pela fresta do portão aberto, ganhando a rua em valentias felizes de língua de fora.
A primeira saudade avança firme no pneu de um carro em movimento e o acompanha até o fim da rua. Depois volta correndo e late em sua cara a lembrança das decisões corajosas que você nunca tomou na vida. A segunda é um vira-lata maltrapilho. Ele invade uma casa vizinha e encontra o amor na companhia de uma pequena dama solitária e infeliz de raça nobre. Em farta e franca desobediência às convenções comerciais, ele a toma nas patas e planta em seu ventre uma ninhada de adoráveis cães sem dono. Você observa a tudo recordando as tantas declarações de amor que jamais conseguiu fazer.
A primeira saudade avança firme no pneu de um carro em movimento e o acompanha até o fim da rua. Depois volta correndo e late em sua cara a lembrança das decisões corajosas que você nunca tomou na vida. A segunda é um vira-lata maltrapilho. Ele invade uma casa vizinha e encontra o amor na companhia de uma pequena dama solitária e infeliz de raça nobre. Em farta e franca desobediência às convenções comerciais, ele a toma nas patas e planta em seu ventre uma ninhada de adoráveis cães sem dono. Você observa a tudo recordando as tantas declarações de amor que jamais conseguiu fazer.
Enquanto isso, um grupo de cachorrinhos filhotes esparrama um saco de lixo na calçada, você esfrega os olhos ardidos de lembrança da casa cheia de filhos e bichos que jamais teve, perde a conta de quantas saudades se refestelam à sua frente e se deixa estar ali, tocado por cada uma delas.
Então o mais magro e ligeiro dos cachorros em fuga desanda a correr. Ele corre cheio de dignidade. Corre louco e livre até sumir de vista e nunca mais voltar. Seguindo-o com os olhos, você se lembra dos dias em que lhe faltou a coragem de deixar para trás as suas tristezas e não foi capaz de sumir no mundo como talvez devesse fazer.
A saudade e sua matilha ficam por ali, entrando e saindo, correndo atrás dos próprios rabos, lembrando sua espera pelo amor que nunca veio. Ou que veio enquanto você se ocupava demais no trabalho, no pagamento das contas, no cumprimento das obrigações e de tantas convenções familiares.
Nos modos livres dos bichos em fuga, você mira as tantas vezes em que, na coleira do medo, não teve a ousadia de romper a corda encardida dos romances doentes que lhe apertaram o pescoço e a alma.
E a todas essas os cachorros rolam na terra, bebem água das poças e fazem você recordar as noites em que não foi capaz de mergulhar de roupa no mar da madrugada. Você pensa nos dias em que tudo aquilo que esperava não veio e nem trouxe consigo uma enxurrada de pequenos milagres inundando a vida triste, como uma chuva de gentilezas que despenca sobre os homens e lava a rotina de suas vidas.
Mas então o estampido violento das urgências diárias espanta os cães para longe. A saudade pega sua bolsa de lembranças e vai embora como estranha, sem dizer adeus ou avisar se volta. Pronto. Você já pode respirar. Você volta a seu caminho de afazeres no fluxo interminável das coisas comuns e esquece. Afinal, era só uma saudade à toa do que você nunca viveu. Saudade de nada e de tudo. Saudade do que viria a ser, do que poderia ter sido. Do que talvez ainda seja e do que, quem sabe, nunca será.
Revista Bula
Ilustração: Jim Daly
Revista Bula
Ilustração: Jim Daly
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