Cada declinar do dia aponta o dormitório final do homem a qualquer hora pela morte.
O dia se despede, dando um até logo, deixando lugar às sombras que com vagar se completam.
A noite é uma pequena morte. Alguns santos, quando deitavam, ensaiavam sua sepultura.
Como o dia acaba, e nos preparamos para hibernar, de modo análogo acabará nosso tempo, nossos anos, nossos dias. Os dias e horas se vão esvaindo e, como crianças desobedientes que não querem ir cedo pra cama, nenhum de nós almeja dormir tão logo eternamente.
Devemos ser capazes de entregar a Deus o trabalho incompleto de cada dia, da mesma forma que entregaremos, por ocasião da morte, a tarefa incompleta de nossa existência na terra.
É sábio e realístico entregar o fim do dia e deixar tudo para o outro amanhecer, o que não podemos concluir nesse adormecer.
Mais sapiente ainda é a entrega final de nosso ser, entregando a Deus nossa existência mortal, apesar de nos enxergarmos incompletos no temeroso dia final. Há necessidade de estar ciente de constituir-me num ser finito e limitado, cada qual caminhando para a derradeira morte.
Na perspectiva heideggeriana, o homem é ser-de-angústia, ser-de-projeto e, em especial, o que o filósofo da flor esta negra chamou de ser-para-a-morte.
Segundo o filósofo existencial e um tanto fatalista, o ser-aí é o homem e o mundo ao mesmo tempo, em sua realidade finita e imediata, entregue ao seu destino.
Desse modo, o homem também não é uma mera coisa que reside inerte em um mundo emergente. Pelo contrário, na medida em que compreende o seu ser mergulhado na história, o homem se coloca no campo da possibilidade e elabora a criatividade de seu existir.
O declínio de cada entardecer provoca uma angústia e nostalgia em cada um de nós, vendo o dia que passa ser engolido pelas trevas e desaparecendo no vazio da insignificância como tempo perdido que não volta. Da mesma forma, no ocaso de nossa permanência no mundo, seria frustrante crer que declinados simplesmente em pó, fossemos engolidos pela morte e escuridão, sem esperança de alvorecer para uma eternidade.
Ninguém de nós quer abraçar a morte. Não queremos partir e não queremos deixar que os que amamos partam. Se vamos a um velório e em finados visitarmos os túmulos de nossos mortos, existirá nessa hora a vantagem de ainda não ser eu que estou lá. Mas um dia estarei usando a última vestimenta de madeira. Tememos a morte como uma vilã que vem nos assombrar, em hora incerta e imprecisa. Muitos se angustiam com sua chegada. O temor é normal, a angústia, existencial e paradoxal.
A angústia é mais ampla que o temor, pois carrega um pretenso remorso de haver vivido em vão os nossos dias, que passam como sombra. Como diz um salmo: “O homem é como um sopro; os seus dias, como a sombra que passa” (Salmo 144).
A perspectiva cristã aponta uma e única vida depois da morte.
Ao bom ladrão arrependido a seu lado no calvário, Jesus prometeu que ainda naquele mesmo dia estaria ele com Deus no paraíso, não depois de repetidas vidas após esta.
A eternidade consiste em uma continuidade dessa vida que damos andamento e direção, quer para a salvação, quer para a perdição. O livro da sabedoria aponta que Deus não fez a morte, nem tem prazer com a destruição dos vivos e que a justiça é imortal (Sb 1,13-15).
Na verdade, é a morte que dá sentido à vida, as sombras dão destaque à luz, a noite dá beleza ao dia, a negritude da noite, o destaque às estrelas cintilantes
É a presença da maldade que dá heroísmo à bondade, a angústia dá sabor ao conforto, à paz e tranquilidade.
É a efemeridade da vida passageira que tempera a infinitude, que buscamos cada qual, criados que fomos por um Deus Imortal e Eterno.
Gerson Schmidt
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