quarta-feira, 17 de julho de 2013

A árvore que floresce no inverno...

   


Os sinais eram inequívocos. Aquelas nuvens baixas, escuras... O vento que soprava desde a véspera, arrancando das árvores folhas amarelas e vermelhas. Não queriam partir... É, estava chegando o inverno. Deveria nevar. Viriam então a tristeza, as árvores peladas, a vida recolhida para funduras mais quentes, os pássaros já ausentes, fugidos para outro clima, e aquele longo sono da natureza, bonito quando cai a primeira nevada, triste com o passar do tempo... Resolvi passear, para dizer adeus às plantas que se preparavam para dormir, e fui, assim, andando, encontrando-as silenciosas e conformadas diante do inevitável, o inverno que se aproximava. Qualquer queixa seria inútil. E foi então que me espantei ao ver um arbusto estranho. Se fosse um ser humano, certamente o internariam num hospício, pois lhe faltava o senso da realidade, não sabia reconhecer os sinais do tempo. Lá estava ele, ignorando tudo, cheio de botões, alguns deles já abrindo, como se a primavera estivesse chegando. Não resisti e, me aproveitando de que não houvesse ninguém por perto, comecei a conversar com ele, e lhe perguntei se não percebia que o inverno estava chegando, que os seus botões seriam queimados pela neve naquela mesma tarde.

Argumentei sobre a inutilidade daquilo tudo, um gesto tão fraco que não faria diferença alguma. Dentro em breve tudo estaria morto... E ele me falou, naquela linguagem que só as plantas entendem, que o inverno de fora não lhe importava, o seu era um ritmo diferente, o ritmo das estações que havia dentro. Se era inverno do lado de fora, era primavera lá dentro dele e seus botões eram um testemunho da teimosia da vida que se compraz mesmo em fazer o gesto inútil. As razões para isso? Puro prazer. Ah! Há tantas canções inúteis, fracas para entortar o cano das armas, para ressuscitar os mortos, para engravidar as virgens, mas não tem importância, elas continuam a ser cantadas pela alegria que contêm... E há os gestos de amor, os nomes que se escrevem em troncos de árvores, preces silenciosas que ninguém escuta, corpos que se abraçam, árvores que se plantam para gerações futuras, lugares que ficam vazios, à espera do retorno, poemas inúteis que se escrevem para ouvidos que não podem mais ouvir, porque alguma coisa vai crescendo por dentro, um ritmo, uma esperança, um botão – pela pura alegria, um gozo de amor. E me lembrei de um pôster que tenho no meu escritório, palavras de Albert Camus: “No meio do inverno eu finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível”.

Agradeci àquele arbusto silencioso o seu gesto poético. Ah, sim! Quando os pássaros fugiam amedrontados, eles levavam no seu vôo as marcas do inverno que se aproximava. Quando as árvores pintavam suas folhas de amarelo e vermelho, como se fossem ipês ou flamboyants, era o seu último grito, um protesto contra o adeus, aquilo que de mais bonito tinham escondido lá dentro, para que todos chorassem quando elas lhes fossem arrancadas. Sim, eles sabiam o que os aguardava. E os seus gestos tinham aquele ar de tristeza inútil ante o inevitável. Mas aquele arbusto teimoso vivia em um outro mundo, num outro tempo. E, a despeito do inverno, ele saudava uma primavera que haveria de chegar e que naquele momento só existia como um desejo louco. As outras plantas, eu as encontrei como nós, realistas e precavidas, inteligentes e cuidadosas. Já o arbusto tinha aquele ar de criança sonhadora, uma pitada de loucura em cada botão, um poema em cada flor. As outras, se fossem gente, construiriam casas que as protegessem do frio. Já o meu arbusto faria liturgias que anunciam o retorno da vida. Porque liturgia é isto: florescer pela manhã mesmo se for nevar pela tarde.

E aí a alucinação teológica tomou conta da minha cabeça e me lembrei da canção do profeta Habacuque: «Muito embora não haja flores na figueira, nem frutos se vejam nos ramos da videira; nada se encontre nos galhos da oliveira e nos campos não exista o que comer; no aprisco não se vejam ovelhas e nos currais não haja gado: todavia eu me alegro».

Nos brotos do arbusto, as palavras do profeta: um gesto a despeito de tudo. Lembrei-me, então, de uma velha tradição de Natal, ligada à árvore. As famílias levavam arbustos para dentro de suas casas. E ali, neve por todas as partes, elas os faziam florescer, regando-os com água aquecida. Para que não se esquecessem de que, em meio ao inverno, a primavera continuava escondida em alguma parte.

As primeiras liturgias cantaram este poema dizendo: “(...) nasceu da Virgem Maria”. Virgindade: caminho bloqueado, sementes inúteis, jardins interditados, nascimentos proibidos, vida impossível.

Um botão que floresce no inverno? Inverno é o frio, a neve, o silêncio, o torpor, a morte.

Herodes: cascos de cavalos, espadas de aço e queixos de ferro; a razão diz que a mansidão não pode triunfar contra a brutalidade.

No entanto, em algum lugar, um arbusto floresce no inverno e uma Virgem fica grávida. E quem a engravidou? O Vento, esperança, nostalgia. E o Vento se fez Evento. O afeto se fez feto...

 Quando as plantas florescem no inverno, ali se escreve o nome do Grande Mistério...

                                          (Rubem Alves)

Nenhum comentário:

Postar um comentário