É comum chamar de ignorante aquela pessoa que não sabe ler nem escrever. Porém, esses são analfabetos, não ignorantes. A ignorância ultrapassa as questões escolares.
Qualquer pessoa que durante sua criação não tenha tido algum acesso à arte de boa qualidade, a noções mínimas de filosofia e psicologia, à literatura, à informação, à música e, principalmente, à ética e ao afeto, arranca em desvantagem. Pode conseguir se formar, virar bacharel, doutor, mas permanecerá endurecido por um mundo estreito, terá dificuldade de dialogar. Abandonado pela falta de critério, de instrução e de conhecimento, viverá bitolado como um selvagem. Não conseguirá enxergar o mundo de forma generosa, apenas rosnará para espantar o próprio vazio.
Como você deve ter adivinhado, isso nos leva ao menino Bernardo. Não preciso descrever o que senti ao ler a transcrição dos diálogos gravados dentro daquela casa em Três Passos – você sentiu o mesmo. É desolador. Leandro e Graciele, que em tese eram responsáveis pelo garoto, são dois débeis sem consciência do que suas atitudes provocavam. Mesmo que Bernardo fosse uma peste, era uma criança. Uma criança!
A covardia psicológica que sofreu é diabólica.
O desfecho do caso foi uma exceção – raros sãos os pais que matam filhos ou enteados. Porém, se os assassinos são poucos, os ignorantes proliferam em todos os bairros, em todas as classes sociais: inúmeros homens e mulheres simplesmente não zelam pela cabeça dos filhos. Ensinam a escovar os dentes, a dizer obrigado, matriculam numa escola e tarefa cumprida. São tão ignorantes que muitos fazem uma brincadeira considerada “didática”: estimulam o filho a se jogar de cima de um armário garantindo que o segurarão nos braços. E seguram. Seguram na primeira vez, na segunda, na terceira, até que na próxima a criança se joga e o pai o deixa se esborrachar no chão, justificando-se com a pérola: “É pra você aprender a nunca confiar em ninguém – nem em mim”.
Que cretinice. Crianças precisam aprender a confiar, não a desconfiar. Crianças precisam ter seus afetos respeitados, e não ouvir que a mãe e o pai que amam são vagabundos – mesmo que sejam. É preciso garantir a sanidade mental de uma criaturinha em formação, usar palavras amáveis, não destruir seus sonhos, dizer a verdade com jeito, não estimular a competição, não fazê-la se sentir desprotegida, não tratá-la com grossura, não obrigá-la a se posicionar como um adulto antes
da hora. Tudo isso também é violência.
Custaremos a ver outro assassinato hediondo como esse, mas crianças sofrendo agressões pesadas continuarão a existir. Elas não morrerão, mas crescerão com transtornos emocionais e um dia criarão seus próprios filhos de que maneira? Com o padrão miserável que vivenciaram.
Para evitar que crianças se esborrachem no chão e na vida, para fazê-las confiar em si mesmas e no mundo, só combatendo a ignorância.
Martha Medeiros