Faz muitos anos, li um romance de um autor francês cujo nome nunca mais consegui lembrar. Este livro, indicação da Martha Medeiros, conta a história de uma paixão extraconjugal. O casal em questão, em um certo momento da história, escapa para o Exterior até o dia fatídico em que a mulher decide voltar para o ex-marido. Cabe ao homem, que é também o narrador, fazer a vistoria da casa que alugara para viver este amor. Assim, enquanto o funcionário da imobiliária apontava riscos nas paredes e lascas nos móveis, o narrador evocava os momentos vividos ali com a sua amante: o que para o corretor era uma marca na parede ou um risco na laca de uma mesa, para o narrador era a evocação de uma noite especial, de uma briga terrível onde copos foram quebrados e palavras duras foram ditas, de um passado vivido com amor em todos os seus altos e baixos.
Nunca esqueci daquela cena... Recentemente, acabei me colocando na pele daquele personagem no dia da vistoria do seu imóvel alugado. Porque recebi aqui na minha casa uma corretora, já que estamos de mudança e decidimos alugar o nosso apartamento. E então, um pouco porque sou romancista e a narrativa não se descola de mim (nem para o meu próprio bem), alternei-me entre o papel de dona da casa e o de corretora de imóveis: um tanto, eu olhava cada coisa com os meus olhos amorosos e cheios de memórias, e então eu já era a moça ao meu lado, enxergando cada pequeno risco, cada falha no taboão, cada porta que não encaixava perfeitamente. Eu via a janela cuja veneziana emperra um pouco ao descer pelo seu velho trilho, e via também uma tarde quando a veneziana emperrou em pleno temporal, e lembrei de como rimos e ficamos furiosos ao mesmo tempo, tentando fechar a teimosa veneziana. E vi, nos riscos do taboão, os primeiros passos do meu filho que já se vai para os 13 anos, e em cada canto, armário e gaveta, as recordações pulavam, lindas, doloridas e alegres; e eu já não estava mais mostrando o meu apartamento para outrem, estava revendo minha a vida feliz que vivi entre estas paredes nos últimos 12 anos. Natais, aniversários, as marcas dos carrinhos do meu filho caçula, os risos e as manhãs, as noites românticas, a cicatriz sob o tapete de um antigo pipi da nossa cachorrinha que fugiu há dois verões, tudo pulou em cima de mim. Não sei o que a corretora achou do nosso apartamento. A minha casa tem um estado de espírito e também seus defeitos, vincos, riscos e janelas teimosas. E tive orgulho de tudo isso naquele dia, como teve o personagem do romance que não consigo esquecer. O fato, meus amigos, é que a felicidade deixa marcas.
Letícia Wierzchowski
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