E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa.
Quando o visitante sentou na areia da praia e disse:
“Não há mais o que ver”, saiba que não era assim.
O fim de uma viagem é apenas o começo de outra.
É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava.
É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles.
Certa vez perguntaram a uma mãe qual era seu filho preferido, aquele que ela mais amava. E ela, deixando entrever um sorriso, respondeu: "Nada é mais volúvel que um coração de mãe. E, como mãe, lhe respondo: o filho predileto aquele a quem me dedico de corpo e alma... É o meu filho doente, até que sare. O que partiu, até que volte. O que está cansado, até que descanse. O que está com fome, até que se alimente. O que está com sede, até que beba. O que estuda, até que aprenda. O que está com frio, até que se agasalhe. O que não trabalha, até que se empregue. O que namora, até que se case. O que casa, até que conviva. O que é pai, até que os crie. O que prometeu, até que se cumpra. O que deve, até que pague. O que chora, até que cale.
E já com o semblante bem distante daquele sorriso, completou: O que já me deixou... ...até que o reencontre... (Erma Bombeck)
Olhe, há tristezas de dois tipos. Primeiro, são as tristezas diurnas, quando o mundo está iluminado pelo sol. Tristezas para as quais há razões. Fico triste porque o meu cãozinho morreu, porque meu filho está doente, porque crianças esfarrapadas e magras me pedem uma moedinha no semáforo, porque o amor se desfez. Para essas tristezas há razões. Quem não sente essas tristezas está doente e precisaria de terapia para aprender a ficar triste. Tristeza é parte da vida. Ela é reação natural da alma diante da perda de algo que se ama. O mundo está luminoso e claro - mas há algo, uma perda, que faz tudo ficar triste.
Segundo, são as tristezas de crepúsculo. O crepúsculo é triste, naturalmente. Não, não há perda nenhuma. Tudo está certo. Não há razões para ficar triste. A despeito disso, no crepúsculo a gente fica. Talvez porque o crepúsculo seja uma metáfora do que é a vida: a beleza efêmera das cores que vão mergulhando no escuro da noite.
A alma é um cenário. Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca, inundada de alegria. Por vezes, ela é como um pôr de sol, triste e nostálgico. A vida é assim. Mas, se é manhã brilhante o tempo todo, alguma coisa está errada. Tristeza é preciso. A tristeza torna as pessoas mais ternas. Se é crepúsculo o tempo todo, alguma coisa não está bem. Alegria é preciso. Alegria é a chama que dá vontade de viver.
Faz muitos anos, li um romance de um autor francês cujo nome nunca mais consegui lembrar. Este livro, indicação da Martha Medeiros, conta a história de uma paixão extraconjugal. O casal em questão, em um certo momento da história, escapa para o Exterior até o dia fatídico em que a mulher decide voltar para o ex-marido. Cabe ao homem, que é também o narrador, fazer a vistoria da casa que alugara para viver este amor. Assim, enquanto o funcionário da imobiliária apontava riscos nas paredes e lascas nos móveis, o narrador evocava os momentos vividos ali com a sua amante: o que para o corretor era uma marca na parede ou um risco na laca de uma mesa, para o narrador era a evocação de uma noite especial, de uma briga terrível onde copos foram quebrados e palavras duras foram ditas, de um passado vivido com amor em todos os seus altos e baixos.
Nunca esqueci daquela cena... Recentemente, acabei me colocando na pele daquele personagem no dia da vistoria do seu imóvel alugado. Porque recebi aqui na minha casa uma corretora, já que estamos de mudança e decidimos alugar o nosso apartamento. E então, um pouco porque sou romancista e a narrativa não se descola de mim (nem para o meu próprio bem), alternei-me entre o papel de dona da casa e o de corretora de imóveis: um tanto, eu olhava cada coisa com os meus olhos amorosos e cheios de memórias, e então eu já era a moça ao meu lado, enxergando cada pequeno risco, cada falha no taboão, cada porta que não encaixava perfeitamente. Eu via a janela cuja veneziana emperra um pouco ao descer pelo seu velho trilho, e via também uma tarde quando a veneziana emperrou em pleno temporal, e lembrei de como rimos e ficamos furiosos ao mesmo tempo, tentando fechar a teimosa veneziana. E vi, nos riscos do taboão, os primeiros passos do meu filho que já se vai para os 13 anos, e em cada canto, armário e gaveta, as recordações pulavam, lindas, doloridas e alegres; e eu já não estava mais mostrando o meu apartamento para outrem, estava revendo minha a vida feliz que vivi entre estas paredes nos últimos 12 anos. Natais, aniversários, as marcas dos carrinhos do meu filho caçula, os risos e as manhãs, as noites românticas, a cicatriz sob o tapete de um antigo pipi da nossa cachorrinha que fugiu há dois verões, tudo pulou em cima de mim. Não sei o que a corretora achou do nosso apartamento. A minha casa tem um estado de espírito e também seus defeitos, vincos, riscos e janelas teimosas. E tive orgulho de tudo isso naquele dia, como teve o personagem do romance que não consigo esquecer. O fato, meus amigos, é que a felicidade deixa marcas.