Na palestra inaugural do Fronteiras do Pensamento, a historiadora Karen Armstrong apontou a compaixão como a “regra de ouro” presente em todas as religiões; o princípio básico da espiritualidade humana seria a máxima: “Nunca trate ninguém como você não gostaria de ser tratado”. Foi uma fala simples e espontânea, carregada de sentimento e de verdade. Como uma chuva num solo árido, que alívio foi ver a Sra. Armstrong desfiando a verdadeira essência da humanidade – essência tão tristemente escanteada da nossa vida cotidiana.
Eu não sou religiosa, não costumo frequentar nenhum culto e nenhum templo me aguarda. Mas acredito em Deus, acredito numa energia maior, e toda vez que posso exercer a compaixão – e a gentileza, um de seus subprodutos mais cotidianos – sinto-me afinada com essa energia. Deus existe? Quem sou eu para responder. Mas existimos, você e eu, existimos nós, homens e mulheres – cidadãos, vizinhos, colegas de coletivo, transeuntes –, existimos e nos organizamos socialmente, compartilhando espaços, realidades e circunstâncias históricas.
No entanto, basta dar um único passeio por Porto Alegre, por exemplo, e o que salta aos olhos é a maneira como a compaixão e a gentileza são hoje produtos de luxo. Cidadãos que somos de uma mesma cidade, a maioria de nós não hesita em avançar com o carro sobre as faixas de segurança, e o que vemos por aí são pedestres acossados nas esquinas. Bons dias e boas tardes se apagaram do uso cotidiano – se somos todos amigos no Facebook, a regra não vale para as ruas.
Dia desses, uma senhora já bem idosa foi de uma grosseria ímpar no supermercado ao trancar um corredor com seu carrinho, e deu um pequeno espetáculo lastimável quando solicitada a dar a passagem. Voltei para casa com as compras feitas, mas desanimada. O princípio básico do convívio social se esfalfa por aí a todo instante. Melhor do que rezar um Pai Nosso antes de dormir é dizer um bom dia na parada de ônibus, é dar um sorriso para a caixa do supermercado, é chegar ao trabalho de bom humor. Construindo realidades mais agradáveis, chegaríamos mais perto daquilo que sonhamos.
(Letícia Wierzchowski)
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