quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Em Defesa das Árvores...


                                                                                
Estava eu na sala de espera do meu médico trabalhando absorto no meu laptop para matar o tempo, os “oclinhos” de ver perto na frente dos olhos, ao longe tudo era um borrão quando, de repente, um borrão alto se colocou à minha frente, baixei os “oclinhos” para ver à distância: era um homem que conheci menino, de precoce vocação científica, posto que menino ainda, se comprazia em experimentos incendiários com gases mal cheirosos. Depois dos cumprimentos de praxe e sem mais delongas ele disse: “Rubem, escreva uma crônica em defesa das árvores.” Havia indignação em sua voz e ele relatou:

“Havia, no terreno do meu vizinho, um ipê maravilhoso, árvore muito velha, tronco grosso, que anualmente produzia uma floração cor-de-rosa, para espanto e felicidade de todos. Pois, sem maiores avisos, o tal vizinho cortou o ipê. Fiquei indignado e fui saber das razões do assassinato. Que mal lhe teria feita aquela árvore mansa? E ele me explicou que as raízes do velho ipê estavam rachando o seu muro de tijolos e argamassa. Um ipê que leva cinqüenta anos para crescer cortado por causa de um muro que se constrói num dia! Aí lhe perguntei: “Por que não me falou? Eu teria pago a reconstrução do seu muro…”

E concluiu: “Você escreve uma crônica?” Tive uma reação desanimada. Lembrei-me das palavras tristes do Vinícius no seu poema “O Haver”, em que fala da “sua inútil poesia”. Sinto assim, de vez em quando, que aquilo que escrevo é inútil. Os que têm poder nem lêem e se lêem não levam a sério. As razões que movem a política são as razões dos machados e das serras; não são as razões da beleza. Escrever, para quê? Para sensibilizar o vizinho que gosta mais de um muro que de um ipê? O que eu escrevesse só encontraria eco naqueles que amam mais os ipês que os muros. Mas, nesse caso minha escritura seria desnecessária. E para os que amam mais os muros que os ipês ela seria inútil. Aí me lembrei de um poema de Chuang-Tzu, escrito séculos antes de Cristo: “Eu sei que não terei sucesso. Tentar forçar os resultados somente aumentaria a confusão. Não será melhor desistir e parar de me esforçar? Mas, se eu não me esforçar, quem o fará?” As palavras do sábio foram uma repreensão ao meu desânimo. Comecei a pensar. Lembrei-me de fato semelhante acontecido na minha rua. Havia um ipê amarelo que florescia no mês de julho. O chão ficava dourado com suas flores. Mas a dona da casa em frente ao ipê e a sua incansável vassoura deram o nome de “sujeira” ao dourado das flores caídas.

E, um belo dia, a árvore amanheceu com um anel cortado na sua casca. As veias pelas quais sua seiva circulava haviam sido seccionadas durante a noite. O ipê morreu. A vassoura triunfou. Há pessoas cujas idéias nascem da vassoura. Visitando um amigo que mora num condomínio rico de Campinas alegrei-me vendo que ele era todo arborizado com magnólias. As flores das magnólias são quase insignificantes. Mas o perfume é maravilhoso. Quem respira o perfume de uma magnólia tem a alma tocada pelo divino. Aí o meu amigo apontou para uma casa do outro lado da rua. Lá não havia magnólias. E explicou: “A dona da casa disse que dava muito trabalho varrer as folhas que caíam no chão.” Agora mesmo, a um quarteirão de onde escrevo, havia três daquelas árvores que se chamam “Chapéu de Sol”, de folhas largas e sombra generosa. Pois a dona da casa mandou cortar todos os galhos das três, ficando só os toquinhos. Ficaram parecidas com cabides de pendurar chapéu. Mas as árvores não guardam rancor. Trataram de continuar a viver - e nos toquinhos surgiram brotos verdes, como um gesto de perdão. Percebendo que as árvores insistiam em viver, ela mandou que todos os brotos fossem arrancados.
Quando as serras da CPFL mutilaram as velhas paineiras da Orosimbo Maia, que todos amavam, houve uma onda de indignação que ocupou as manchetes do Correio Popular.


Pois um leitor escreveu aborrecido porque o jornal perdia tanto tempo com uma coisa sem importância como árvores. O prazer em cortar árvores, me parece, está ligado à volúpia do poder. Quem corta, tortura ou mata experimenta o prazer de exercer poder sobre o mais fraco. Mas acho que o prazer em cortar árvores está ligado a uma coisa mais sinistra. Suspeito que estejamos vivendo um momento de metamorfose da nossa condição humana. Até agora temos sido habitantes do mundo da vida. Nosso habitat é constituído por florestas, animais, rios e mares. Somos seres biológicos, corpos. Mas agora estamos mudando de casa. Estamos trocando nossa casa biológica por uma outra casa eletrônica.

Faz tempo fiz a travessia dos lagos andinos - cenários maravilhosos, entre lagos, vulcões e florestas - passando por Bariloche e terminando em Buenos Aires. Em Bariloche fiquei conhecendo um casal que fazia o mesmo percurso com dois filhos adolescentes. Fui reencontrá-los numa das ruas centrais de Buenos Aires. “Graças a Deus estamos aqui!”, me disse o marido. “Já não aguentávamos mais: só lagos, montanhas e árvores. Aqui, felizmente, temos os videogames.” Virei Hulk na mesma hora e lhe disse: “Tomaram a excursão errada. Seu destino era Las Vegas!” Mas eles nada mais fizeram que expressar de forma grosseira o que já ficou normal. Nenhum adolescente troca um vídeo game por jardinagem. Nos filmes de ficção científica do tipo “Guerra nas Estrelas” que emocionam milhões não há árvores: somente máquinas com inteligência eletrônica. Nossas inteligências estão cada vez mais ligadas aos vídeos e computadores e cada vez mais distantes da natureza. Há crianças que nunca viram uma galinha de verdade, nunca sentiram o cheiro de um pinheiro, nunca ouviram o canto do pintassilgo e não têm prazer em brincar com terra. Pensam que terra é sujeira. Não sabem que terra é vida. As nossas escolas - seria bom se elas ensinassem as crianças a amar as árvores. Chamar pelo nome e amar as paineiras, as sibipirunas, as magnólias, os pinheiros, as magueiras, as pitangueiras, os jequitibás, os ipês, as quaresmeiras… Aprendi na escola que os homens são uma forma de vida mais evoluída que as árvores. Estou brincando com a possibilidade do contrário: que as árvores sejam mais evoluídas que nós. Se assim não fosse por que haveriam as Escrituras Sagradas de comparar o homem feliz com uma árvore plantada junto a ribeiros de águas? Com o que concorda Alberto Caeiro: “Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos…” Deus nos amará quando formos como as árvores!

Ninguém vai para o inferno. Os que não amam as árvores também vão para o céu. Mas, como todos sabem, o céu é o lugar onde se encontram as coisas que amamos. O lugar onde se encontram as coisas que não amamos é o inferno. Assim, para os que não amam as árvores, um lugar com bosques, florestas, flores e riachos seria o inferno. Eles não irão para o inferno de árvores. Irão para o seu céu sem árvores, pois é isso que eles amam.

Morarão numa cidade planejada pelo Niemeyer onde tudo será feito de concreto segundo formas geométricas perfeitas, em nada semelhantes às coisas vivas. Os prédios do Congresso Nacional, em Brasília, são uma metade de esfera voltada para cima e uma metade de esfera voltada para baixo, sem janelas. Na cidade planejada pelo Niemeyer as árvores não sujarão as calçadas com suas folhas e flores. As árvores serão de concreto, semelhantes aos cogumelos: uma esfera cortada pelo meio equilibrando-se sobre um cilindro. O bom disso é que não haverá despesas com jardineiros. E as donas de casa não precisarão varrer a calçada.
                 
                                                                                       (Rubem Alves)

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