domingo, 1 de junho de 2014

O Legado de Barbosa...


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Ao antecipar sua aposentadoria do Supremo, o ministro Joaquim Barbosa abrevia também o balanço que começa a ser feito de sua trajetória na mais alta Corte do país. Despede-se do STF, no final de junho, um magistrado que angariou respeito pelo mérito da atuação, pela sólida formação jurídica e cultural e também por decisões consideradas controversas. O ministro ganhou notoriedade como relator do chamado mensalão e, mais tarde, como presidente do STF na fase final do julgamento da ação 470. Foi assim que construiu a imagem de juiz que finalmente atendeu às expectativas da sociedade na reparação de delitos cometidos por ocupantes de cargos públicos.
Barbosa contribuiu para aproximar o Supremo da população e para inspirar referências que o Judiciário tem a missão de incorporar às suas rotinas, mesmo com as restrições já conhecidas de colegas, de juristas e operadores do Direito. Ao assumir, há 11 anos, o ministro já estava construindo uma história pessoal única. De origem humilde, foi o primeiro negro a chegar ao Supremo. Vinha do Ministério Público, com aperfeiçoamento acadêmico no Exterior, e marcou sua atuação, desde o início, pela forma categórica com que defende suas posições.
A relatoria do mensalão foi a oportunidade para expor conhecimento e determinação na luta contra a impunidade. Foi também por tal postura que passou a merecer avaliações nem sempre favoráveis. Como principal protagonista do Judiciário no mais rumoroso caso de corrupção do país, inspirou as críticas dos que decidiram considerá-lo muito mais um acusador do que um magistrado. Antes mesmo de assumir a presidência do Supremo, em novembro de 2012, reagiu com naturalidade a esses questionamentos e, mais tarde, já no comando da Corte, até mesmo a ataques públicos de inconformados com sua atuação.
Também não desmerecem sua trajetória os enfrentamentos que teve com outros ministros, em vários ocasiões, por divergências que exacerbaram pontos de vista jurídicos e pessoais e também as vaidades que frequentam o Supremo. A marca de sua passagem é a da obstinação com que se dedicou ao processo do mensalão, apesar de ter sido visto com certa desconfiança, do momento em que assumiu o caso, em 2006, até o início da leitura de suas conclusões, em agosto de 2012.
Não há exagero em dizer que Barbosa contribuiu para o fortalecimento da reputação da Justiça e para a compreensão de atos complexos, ao ser visto e ouvido ao vivo pela TV e provocar as reações de especialistas e de leigos sobre deliberações que permitiam as mais variadas interpretações. O ministro que obteve reconhecimento dentro e fora do Brasil não é, nem poderia ser, uma unanimidade. O legado que deixa deve ser inspirador dos que, em todas as instâncias, e não só nas altas cortes, trabalham pela efetividade da Justiça.
Editorial Zero Hora

Cecília Meireles...



Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Artur da Távola...



"Música é vida interior, e quem tem vida interior jamais

padecerá de solidão."

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Desligue o celular e olhe o céu...



Os dias transcorrem, a alegria pisca à nossa volta, a paz acena lá de longe com um lenço branco. A felicidade
passa por nós e sussurra algumas palavras em nossos ouvidos, ocupados demais com fones sofisticados e outras traquitanas tecnológicas para ouvi-las.
Neste movimento de autorrecolhimento ou auto expulsão simultânea dos clamores do mundo exterior, nos enredamos em um útero ou uma bolha de propriedade exclusivamente nossa. Espaços volitivamente autistas. Impenetráveis. Com nossos ipods, celulares e smartphones caríssimos, somos, nos tempos atuais, conhecidos como integrantes da “geração cabeça baixa”.
Àquela geração para a qual tudo, todos os interesses contemporâneos, se resumem na aquisição sucessiva da mais filigranada e arrojada tecnologia. A ideia é nadarmos nas piscinas da realidade interseccional. Mesclarmos o off line com o online, indistintamente. Como quase-androides ou ciborgues.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Simulando gueixas pós-digitais, nos rendemos definitivamente aos comandos dos games, consoles, dos contatos intermináveis com outros seres virtuais — distantes do alcance das nossas mãos — enquanto deslizamos nossos ágeis dedos pelas telas frias desses gadgets que nos dominam. Agimos assim, como escravos que já nos tornamos da feérie tecnológica.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Na hora de dormir a trepada é rápida, ocorre num átimo, sem sofreguidão, pois já faz tempo que os anseios da carne e do espírito foram trocados pelas maravilhas neo-maquínicas, desfilando em série ante nossos hipnotizados olhos. Google Glass, smart-watches, tabletes velocíssimos se refestelam nos poltronas de nossa gula proliferada, feito câncer.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?

Será tão difícil encararmos os olhos apaixonados do nosso namorado ou namorada, desfrutarmos do enlevo promissor, nos entregarmos a aconchegos carnais explícitos, ternuras e acarinhamentos nascidos do veludo das nossas mãos? Roçar nossa boca quente em outra, provando salivas mornas, intercambiando corporeidades, lábios umedecidos de desejo pleno e aceso.
Quando conseguimos — fato muito raro — nos deter naqueles abençoados momentos, desativar o botão da pressa e virarmos lentamente a cabeça para enxergar o que nos circunda é motivo de especial comemoração. A alegria tenta flertar conosco novamente, pois ela não desiste de tocar nossas anestesiadas emoções. A paz busca se aproximar dos nossos sonhos, cultivando uma paciência desmesurada, até que a abracemos. A felicidade aguarda que possamos decifrar, por instantes que seja, tantas preciosidades que ela tenciona sussurrar em nossos ouvidos.

Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Tornarmo-nos gente, apresentar com orgulho, nos círculos sociais que frequentamos o ser humano de carne e osso que nos compõe. Mas gente saiu de moda, infelizmente. Gente é algo lento, palpável, desagradável. Quase repugnante, até, a possibilidade de farejarmos e descobrirmos o funcionamento de outros corpos em meio a realidades aceleradas e frias. Não revelamos essa triste verdade para ninguém. Esta sensorialização inundada de odores hormonais que se imiscui em nossa fisiologia.
Será tão difícil desligar o celular e olhar para o céu?
Aquela infinita imensidão azul, cujo início remonta a séculos imemoriais, o paraíso perdido e doce. A promessa de voos e bailados por entre suaves nuvens. Um sopro de vento talvez nos conduza ao cimo de uma árvore de cujos galhos pendem frutos saborosíssimos. Seguem-se riachos, cachoeiras, pradarias. O grito silencioso dos inúmeros tons de verde impregnados na paisagem ondulada e envolvente. Pássaros de todas as cores, flores belíssimas, animais silvestres, insetos faceiros como borboletas, joaninhas e gafanhotos ensaiam danças à nossa volta.
Mas não os percebemos. Porque ainda é difícil viver e respirar sem distrações. Amar devagar, com leveza. Entregar-se à delicia das cores vivas, longas caminhadas em trilhas virgens de florestas cuidadas por duendes e gnomos. Mergulhar nas profundezas do mar, buscando desvendar imensuráveis segredos, escondidos em algas, cavernas, corais. Depois retornar à superfície e olhar para o alto, erguer os braços imiscuindo -nos nesse azul recheado de promessas que tingem a imensidão celeste.
Quem sabe neste exato instante, passemos a olhar para a frente, para os lados, para o céu. Girando a cabeça mais livres e conectados com o universo. Mais felizes e humanizados. Esquecendo, inclusive, nossos celulares desligados, em algum bolso da calça.

Revista Bula...

Fotografia...



"Uma fotografia inesquecível não é a tecnicamente mais perfeita ou artística.
 É aquela que tem a conexão mais íntima e profunda como o momento,
 de modo que o espectador a sinta."

 George Lange, fotógrafo

Um dia...

                                                     


Um dia virá
em que a minha porta
permanecerá fechada
em que não atenderei o telefone
em que não perguntarei
se querem comer alguma coisa
em que não recomendarei
que levem os casacos
porque a noite se adivinha fresca.

Só nos meus versos poderão encontrar
a minha promessa de amor eterno.

Não chorem; eu não morri
apenas me embriaguei
de luz e de silêncio.


Rosa Lobato de Faria

Você tem o dom de escutar???

                               

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar.

Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.

Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem.

Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou". Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.

Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia e que de tão linda nos faz chorar.

Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.
Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.




Rubem Alves